Por: Maísa Mota Antunes, Ariane Barros Diniz e Gustavo Menezes (Center for Gastrointestinal Biology, Instituto de Ciências Biológicas, UFMG)
“Que teu alimento seja teu remédio e que teu remédio seja teu alimento”. Essa frase foi dita por Hipócrates (460 - 377 a. C.), o "pai da medicina" e reflete muito bem o importante papel da nossa alimentação como um dos mais relevantes fatores promotores de saúde.
Desde a antiguidade já se percebia – sem muitas bases experimentais naquela época – que a nutrição é um fator preponderante na manutenção do estado de saúde e bem estar do indivíduo. Mas qual a relação entre nutrição e saúde? Por que a alimentação balanceada e correta traz muito mais benefícios que somente um corpo magro e bonito? Para entender isso, precisamos falar sobre o que é “estar saudável” e as estratégias que nosso organismo usa para “manter o estado de saúde”. O estado de saúde é especialmente coordenado, dentre outros, pelo funcionamento adequado do sistema imune do indivíduo. O sistema imune é complexo, distribuído por todo o corpo e altamente ativo.
Dessa forma, para que as diversas células do sistema imunológico funcionem de maneira adequada, é necessário que nutrientes apropriados (como glicose, aminoácidos e ácidos graxos) sejam ingeridos na quantidade e qualidade corretas pelo indivíduo. É fácil então imaginar que a má alimentação pode perturbar o equilíbrio corpóreo, demandando “atitudes” do sistema imune que visem o restabelecimento da saúde. Chamamos essas “atitudes” de resposta inflamatória, e embora muitas vezes a inflamação seja importante para a defesa do indivíduo, há frequentemente um dano tecidual associado à inflamação, especialmente se ela ocorre por longos períodos – como acontece no caso da obesidade e sobrepeso. Assim, ambos os extremos da dieta – como a desnutrição e o alto consumo de gorduras – podem provocar alterações da função imunológica e danos graves aos pacientes.
Entende-se por nutrição todos os processos envolvidos desde a ingestão dos alimentos, até sua absorção e aproveitamento dos nutrientes pelo organismo. Mas para serem aproveitados, esses alimentos precisam ser antes metabolizados. As funções metabólicas do indivíduo são realizadas principalmente pelo fígado. Dentro deste órgão moram milhares de hepatócitos, células que ocupam 80% do fígado. Junto com essas células metabólicas está ainda no fígado uma das maiores populações imunes do organismo, formada principalmente por macrófagos (chamados de “células de Kupffer”), células dendríticas e linfócitos. Essas células atuam como sentinelas constantes, eliminando produtos e microrganismos infecciosos provenientes da microbiota intestinal, e também substâncias tóxicas que ingerimos, como medicamentos, drogas e álcool.
Como tudo que alimentamos passa primeiro pelo fígado antes de chegar em qualquer parte do corpo, um desequilíbrio nutricional afetará profundamente as funções imunológicas e metabólicas do indivíduo. Isso explica porque tantos pacientes no mundo sofrem (e morrem) de doenças hepáticas.
Fica mais claro agora que existe um campo de estudo enorme quando associamos dieta e imunologia. A essa interação entre processos imunológicos e metabólicos deu-se o nome Imunometabolismo. Ou seja, imunometabolismo é a fusão de duas áreas historicamente distintas: imunologia e metabolismo. O conceito de imunometabolismo surgiu a partir da epidemia de obesidade que atingiu a sociedade moderna. Hoje é muito claro que a obesidade é uma doença em que componentes imunes e metabólicos estão correlacionados e convergem para um cenário de agravamento da doença. No entanto, grandes alterações do sistema imune induzidas pela alimentação são observadas mesmo na ausência da obesidade.
A conta do desbalanço é paga pelo sistema imune
O consumo de uma dieta desequilibrada pode gerar impactos em todo o organismo. O consumo excessivo de carboidratos refinados e gorduras, por exemplo, pode levar ao aumento de tecido adiposo e acúmulo de gordura no fígado (esteatose hepática). Esse aumento de gordura corporal e hepática, por sua vez, pode causar alterações nas células imunes residentes desses tecidos favorecendo o desenvolvimento de doenças como resistência a insulina e difunção hepáticas.
Estudos recentes têm demonstrado que um dos principais responsáveis pela progressão dessas doenças são as células do sistema imune, especialmente macrófagos. O prejuízo ao organismo ocorre quando um órgão tem alterações significativas na sua população imune normal, fazendo com que essas células diminuam ou aumentem em número, podendo ainda não exercer suas funções corretamente. E isso pode ser especialmente observado no fígado.
Quando nós submetemos animais de experimentação a dietas ricas em gordura, observamos um aumento da população hepática de neutrófilos (a valores bem similares nos encontrados em doenças hepáticas graves), com concomitante redução da população de macrófagos (queda de quase metade da população normal). Os macrófagos têm uma grande capacidade de remover as bactérias do sangue, o que é essencial em situações em que a barreira intestinal é prejudicada (como na obesidade, por exemplo). Assim, demonstramos que a redução ou disfunção dessas células em decorrência de dieta inadequada aumenta a susceptibilidade de indivíduos a infecções bacterianas. Mas isso não acomete apenas adultos submetidos a dietas desequilibradas. Já nos primeiros dias de vida, a alimentação de um recém nascido via leite materno exerce grande influência sobre o status imunológico e metabólico.
Trabalhos recentes do nosso grupo também revelaram que ao desmamar animais recém nascidos precocemente – situação cada vez mais comum na sociedade moderna – há uma enorme alteração do sistema imunometabólico hepático. Essas alterações gênicas foram mantidas até a fase adulta do animal, e agora estamos investigando como essas mudanças podem predispor o indivíduo a infecções mais graves e recorrentes. Os resultados desses trabalhos podem nos ajudar a buscar alternativas alimentares mais eficazes para recém nascidos que por ventura não tenham acesso ao leite materno.
Hipócrates ficaria extremamente feliz se estivesse aqui para ver o quão certo ele estava e como sua visão integrativa de nutrição e saúde foi assertiva. Nunca se discutiu tanto sobre os benefícios de uma dieta balanceada, e a quantidade de artigos focados em nutrição e imunologia é cada vez maior. Na contramão do conhecimento científico está o bombardeio diário de “fake news” e comentários pseudo-científicos de blogueiros nas redes sociais, reforçando a necessidade de se discutir com embasamento científico rigoroso os importantes avanços no nosso entendimento sobre imunometabolismo.
Referências:
MATHIS & SHOELSON. Immunometabolism: an emerging frontier. Nat Rev Immunol. 2011. February; 11(2): 81.
NAKAGAKI & MAFRA et al. Immune and metabolic shifts during neonatal development reprogram liver identity and function. Journal of Hepatology. 2018 vol. 69 j 1294–1307.
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