Por: Cristina Bonorino*
É no mínimo interessante ser imunologista nesta época. Lá no fim de fevereiro deste ano, quando acompanhávamos a epidemia - então restrita à China -, sabíamos que existia o potencial de pandemia. E quando a pandemia foi oficializada, sabíamos que a única solução seria uma vacina; e que uma vacina eficaz levaria anos. Sabíamos da gravidade da situação, e também que poucos entenderiam isso. Imediatamente, começamos a trabalhar. Porque sabíamos ainda que o aspecto mais importante para o desenvolvimento da vacina era entender a biologia do novo vírus, e qual a melhor resposta imune capaz de neutralizá-lo. Dominamos hoje diferentes tecnologias para desenvolver vacinas, mas cada vírus tem adaptações diferentes para infectar seres humanos.
A melhor vacina é aquela que desenvolve a melhor resposta protetora. Não existe pesquisa aplicada sem pesquisa básica. Neste caso, as duas vem avançando numa velocidade impressionante, lado a lado, funcionando como um verdadeiro treinamento prático para jovens imunologistas do mundo todo. Mas, ainda temos um longo caminho à frente.
Em pouco mais de dois meses, à medida que se elucidava a estrutura do vírus, e o mecanismo de infecção, os imunologistas dedicaram-se a caracterizar a resposta imune ao vírus. De modo geral, existe uma tríade de respostas imunes consideradas essenciais para resolver infecções virais. Os mais famosos são os anticorpos neutralizantes: eles impedem a infecção de células pelo vírus. As células T CD8+, citotóxicas, não tão conhecidas, formam com os anticorpos uma dupla imbatível, eliminando por sua vez as células que foram efetivamente infectadas. Finalmente, mas não menos importante, sabemos que ambas as respostas dependem da geração de uma resposta inata adequada – e, para vírus, essa resposta se chama interferon. Existe toda uma complexidade adicional de processos, imunológicos ou não, que compõem a resposta do hospedeiro. Mas, para assegurar recuperação de uma infecção viral, essas três respostas são intensamente desejadas, e a sua ausência, correlacionada com um mau prognóstico para o paciente.
Para engenheirar essas respostas da melhor maneira, é necessário entender quais os alvos da resposta são mais significativos, bem como mapear como o vírus os inibe, de forma a se multiplicar no infectado. Mas, essas são apenas as respostas que podemos medir no sangue dos pacientes. O alto risco de infecção nos impede atualmente de realizar autópsias e biópsias nos pacientes afetados. Existe um quarto tipo de resposta, que é tão ou mais importante, que só pode ser medido nos locais afetados: os linfócitos residentes no tecido. Ainda não sabemos a dinâmica dessa resposta na COVID-19, por exemplo, no pulmão.
Os diferentes tipos de vacina (resumo aqui 1) podem ajudar a induzir uma ou mais dessas respostas. Por exemplo, as tecnologias mais tradicionais, de vírus inativado (como na vacina da gripe) ou vírus atenuado (como na febre amarela), provocam respostas diferentes. Vacinas inativadas podem gerar anticorpos, e mesmo induzir uma resposta inata. Já com vacinas atenuadas, eliminamos os mecanismos de virulência, mantendo a capacidade infectiva do vírus, mas diminuindo sua capacidade de proliferar – e essas vacinas são boas indutoras da tríade de respostas da qual falamos.
Tecnologias mais recentes incluem o uso de vetores virais – híbridos de vírus atenuados com material genético do vírus alvo. Podem ser usados vetores que podem se replicar, como o de sarampo, ou que não replicam, como adenovírus. Já as VLPs são vírus vazios, sem material genético, mas com a “capa” do vírus alvo, formada pelas moléculas que direcionam o vírus para seus receptores nas células humanas. No caso, a proteína S, da espícula desse coronavírus, responsável pela ligação do vírus ao receptor ACE2 humano 2. A própria proteína S poderia ser usada como vacina – semelhantemente ao desenho da vacina da Hepatite B, que usa apenas o antígeno de superfície desse vírus. E tem também as vacinas de DNA, ou RNA, que ainda são experimentais. Todas aquelas que mimetizam a infecção viral tem o potencial de gerar anticorpos neutralizantes, células T CD8+ e interferon. O importante é gerar células de memória, que se auto-renovam, conferindo assim proteção duradoura.
Existem hoje mais de 100 vacinas sendo desenvolvidas, em diferentes lugares do mundo, empregando uma dessas metodologias 3. Certamente, os países com alto investimento em tecnologia, onde se reconhece o valor econômico desse produto, saíram na frente para o desenvolvimento e testes. Mas, aqui no Brasil, especialistas em vacinas iniciaram estudos imediatamente, mesmo com brutais cortes de verba que ocorrem desde o início de 2019. Para desenvolver as vacinas, começamos com o que chamamos de estudos pré-clínicos, em animais, normalmente camundongos. Apenas recentemente foi desenvolvido um modelo de mais utilidade para isso 4, em que o camundongo expressa o receptor ACE2 humano, facilitando medir se a proteção gerada pela vacina realmente impede a infecção. A seguir vêm os testes em primatas, e depois os testes em humanos – os ensaios clínicos. Ensaios de fase I visam principalmente garantir segurança: a vacina não pode fazer mal. Na fase II, testa-se dose, medindo a resposta antes e depois da vacinação. E finalmente, se a vacina passa nas duas primeiras fases, os estudos fase III comparam a melhor dose determinada com placebo. Todas essas etapas precisam ser completadas consecutivamente, para que uma vacina possa ser aprovada, e liberada para produção.
Os estudos fase III precisam ser multicêntricos, e realizados em locais onde ocorre um surto, um grande número de casos. Infelizmente, o Brasil é hoje o candidato ideal para testes de vacinas, único país do mundo com a curva de casos ainda em franca ascensão. De fato, a fase III de duas das vacinas mais adiantadas terá centros de estudo clínico no Brasil, ambas em São Paulo. A vacina inativada, do Laboratório Sinovac, da China 5, que fez uma parceria com o Instituto Butantan; e a vacina de vetor viral (adenovirus) da Universidade de Oxford 6, produzida hoje pela multinacional Astra-Zeneca, a ser testada no centro de vacinas da UNIFESP. Nesses testes, compara-se a resposta gerada nos indivíduos que recebem a vacina com os que recebem placebo.
Faz-se também o acompanhamento, e ao longo do tempo, o número de casos nos indivíduos vacinados precisa ser significantemente menor que no grupo placebo. A terceira vacina migrando agora para a fase III é a vacina de RNA da Moderna, companhia americana que usa o material genético que codifica para a proteína S, apostando que células do corpo incorporem esse RNA e produzam a proteína, gerando uma resposta. Essa tecnologia ainda é experimental e, enquanto as outras duas vacinas tiveram seus dados divulgados e publicados, o mesmo não aconteceu com a Moderna. Com o valor de suas ações aumentando na bolsa a cada anúncio da empresa, seus executivos foram flagrados vendendo ações na alta, antes que o valor caísse pela não divulgação dos resultados, indicando no mínimo pouca confiança em seu próprio produto. Esse exemplo mostra a importância do investimento público para o desenvolvimento das vacinas, desde o pré-clínico ao menos até a fase II-III, quando parcerias com empresas podem e devem ser contratada para sua produção. No Brasil, diferentes grupos buscam alternativas nacionais para a vacina. O grupo do Dr. Jorge Kalil, em São Paulo, busca desenvolver uma vacina baseada em VLP, ou vírus oco, sem material genético. O grupo do Dr. Flavio Fonseca, do CT-Vacinas da UFMG, em colaboração com a Fiocruz, usa o vírus influenza como vetor viral. Já o grupo do Dr. Marco Antonio Stephano trabalha numa formulação com nanopartículas e proteínas virais para aplicação em spray nasal.
Um cuidado de todos os estudos vacinais é a possibilidade de a vacina ativar mecanismos que piorem a doença – o chamado “disease enhancement”. Esse fenômeno tem um exemplo famoso no caso da Dengue, que possui quatro sorotipos virais. Nessa doença, por mecanismos não totalmente elucidados, alguns dos anticorpos gerados no hospedeiro contra um dos sorotipos pioram a doença quando o mesmo se infecta com um sorotipo diferente. O fenômeno foi visto na vacina para Dengue produzida pela Sanofi, há alguns anos atrás. A única maneira de prevenir isso, novamente, é compreender melhor a biologia de cada infecção viral. Essa preocupação foi presente em diferentes instâncias onde as vacinas para a COVID-19 são discutidas, como aqui 7.
A pergunta que vem sempre é: quando? Quanto tempo até termos a vacina? Mesmo que os testes sejam acelerados, a previsão é de um cenário em que, em não menos do que seis meses, teremos mais de uma vacina ao mesmo tempo, como foi durante a pandemia do H1N1 em 2009-2010, até que estudos decidam qual a melhor. Da mesma forma, a produção dessas vacinas, em escala mundial, traz um desafio todo novo para um mundo que vinha até aqui tratando a saúde como um bem não essencial. Não existe uma empresa hoje que consiga manufaturar mais do que 900 mil doses em um ano. Consórcios serão necessários para garantir que doses cheguem aos 7 bilhões que habitam o planeta. Quem pagará a conta disso? A Gavi (Global Vaccine Alliance), associada à Gates Foundation, lançou uma iniciativa para um fundo de AMC (Advanced Market Commitment) que subsidie produção de vacinas para países pobres. Inicialmente estimado em 2 bilhões de dólares, hoje estimam que o custo chegue a quase 80 bilhões 8. Um projeto semelhante existe na Europa, a IAV (Inclusive Vaccine Alliance). Ainda é incerto se governos de países como EUA e China participarão: eles têm os recursos para desenvolver e fabricar uma vacina restrita as suas respectivas fronteiras, para exploração comercial posterior.
Só o tempo vai decidir qual a melhor vacina: o número de casos deve cair ao longo do tempo, e as células de memória geradas devem ser persistentes. Enquanto isso, os estudos sobre os mecanismos que o vírus usa para burlar a resposta imune também nos fornecem pistas para aprimorar as formulações vacinais que forem surgindo. Somos imunologistas em um mundo tomado por uma pandemia. Precisamos usar esse tempo de intenso trabalho para garantir que o mundo reconheça a importância de criar políticas permanentes de investimento em vacinas, em biotecnologia, em saúde. Porque compreendemos a importância disso para a economia mundial. Porque sabemos que outras podem – e vão - acontecer.
- Callaway, E. The race for coronavirus vaccines: a graphical guide. Nature 580, 576–577 (2020).
- Hoffmann, M. et al. SARS-CoV-2 Cell Entry Depends on ACE2 and TMPRSS2 and Is Blocked by a Clinically Proven Protease Inhibitor. Cell (2020). doi:10.1016/j.cell.2020.02.052
- Sharpe, H. R. et al. The early landscape of COVID-19 vaccine development in the UK and rest of the world. Immunology (2020). doi:10.1111/imm.13222
- Hassan, A. O. et al. A SARS-CoV-2 infection model in mice demonstrates protection by neutralizing antibodies. Cell (2020). doi:10.1016/j.cell.2020.06.011
- Gao, Q. et al. Development of an inactivated vaccine candidate for SARS-CoV-2. Science (80-. ). (2020). doi:10.1126/science.abc1932
- Doremalen, N. van et al. ChAdOx1 nCoV-19 vaccination prevents SARS-CoV-2 pneumonia in rhesus macaques. bioRxiv 2020.05.13.093195 (2020). doi:10.1101/2020.05.13.093195
- Lambert, P. H. et al. Consensus summary report for CEPI/BC March 12–13, 2020 meeting: Assessment of risk of disease enhancement with COVID-19 vaccines. Vaccine 38, 4783–4791 (2020).
- Usher, A. D. COVID-19 vaccines for all? Lancet 395, 1822–1823 (2020).
* Cristina Bonorino é professora e coordenadora do Laboratório de Imunoterapia da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA). A imunologista também é pesquisadora assistente da University of California San Diego, EUA, e membro do Comitê Científico da SBI Imuno.
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