Por Mariana Mazzi1 e Martín Bonamino1,2
- Instituto Nacional de Câncer
- Instituto Nacional de Câncer e FIOCRUZ
Segundo dados da OMS, o câncer segue como a segunda maior causa de morte em todo o mundo, respondendo por 1 em cada 6 óbitos. Nas últimas duas décadas, grandes avanços foram alcançados na compreensão da patogênese da doença, e novos tratamentos aumentaram a qualidade de vida e sobrevida dos pacientes oncológicos. Dentre estes tratamentos, a imunoterapia tem se consolidado como uma das estratégias mais promissoras, com desenvolvimento acelerado desde 1997, quando foi aprovado o primeiro anticorpo monoclonal para tratamento de linfoma. Posteriormente os anticorpos monoclonais foram conjugados a drogas para aumentar sua potência, e surgiram anticorpos biespecíficos e inibidores de checkpoint imunológico, capazes de recrutar componentes da resposta imune contra um alvo tumoral. Porém, uma mudança conceitual importante ocorreu em 2017, com a aprovação dos linfócitos CAR-T, consideradas as primeiras “drogas vivas”. O estudo pivotal que levou à aprovação do primeiro CAR-T para tratamento da leucemia linfoblástica aguda B recaída, contexto de prognóstico sombrio, mostrou taxas de resposta em torno de 80%, que se sustentaram ao menos parcialmente no estudo de seguimento.
Os linfócitos CAR-T são linfócitos T geneticamente modificados para expressar um receptor quimérico contra um antígeno de membrana celular, cujo reconhecimento é feito de forma independente do MHC. A estrutura básica do CAR consiste numa região extracelular, específica para reconhecimento do antígeno e geralmente derivada da fração Fv de uma imunoglobulina (scFv); associada a uma região transmembrana; um ou mais domínios coestimulatórios; e uma região de sinalização intracelular. Após formação da sinapse imunológica, os linfócitos CAR-T são ativados e proliferam, induzindo a morte da célula-alvo por citotoxicidade direta e mediada por Fas/Fas-L. A formação de células de memória é fundamental para sua persistência e controle da doença de base a longo prazo.
Os linfócitos CAR-T efetivamente licenciados para uso clínico, desde 2017 até o momento, são direcionados ao tratamento de neoplasias derivadas de linfócitos B, em especial a leucemia linfoblástica aguda e linfoma difuso de grandes células. Esses linfócitos CAR-T têm como alvo o CD19, uma molécula expressa durante toda a maturação das células B. Embora não se trate de um antígeno tumoral propriamente dito, a destruição de células B normais é um efeito colateral esperado, porém bem tolerado e manejável com a reposição regular de imunoglobulina. Uma segunda droga em fase acelerada de aprovação pelo FDA e pela EMA é o CAR-T anti-BCMA (B Cell Maturation Antigen), para tratamento de mieloma múltiplo.
Em 2019, estudos clínicos com CAR-T corresponderam a mais da metade dos ensaios clínicos em neoplasias hematológicas. Nas neoplasias sólidas, o uso de CAR-T é menos proeminente, notadamente devido aos desafios específicos nessa população. Além da definição de alvos terapêuticos tumor-específicos, de forma a reduzir os riscos de efeitos on-target – off-tumor nos tecidos sadios, a presença de um microambiente tumoral altamente imunossupressor limita a função dos linfócitos CAR-T. Novos desenhos de receptores quiméricos encontram-se em desenvolvimento para endereçar essas questões. Por exemplo, a coexpressão do CAR e moléculas imunomoduladoras que permitem modificar o microambiente tumoral.
No entanto, além da oncologia, diversas doenças crônicas, igualmente graves e debilitantes, podem chegar a ser tratadas no futuro com esta tecnologia, em especial as doenças autoimunes e infecciosas. Pacientes com lúpus eritematoso sistêmico (LES), doença multissistêmica cuja patogênese envolve o depósito de imunocomplexos, podem potencialmente se beneficiar da depleção de células B produtoras de autoanticorpos após tratamento com linfócitos CAR anti-CD19, já licenciadas para uso clínico. Modelos murinos de nefrite lúpica mostraram resultados promissores sustentando esta abordagem. Além disso, os linfócitos CAR anti-BCMA estão sendo testados clinicamente em pacientes com miastenia gravis, caracterizada pela produção de autoanticorpos contra as junções musculares e fraqueza muscular progressiva.
Outra possibilidade de tratamento de doenças autoimunes consiste na construção de células CAR a partir de linfócitos T regulatórios. Os linfócitos T regulatórios exercem efeito inibitório localmente nos tecidos afetados, e são eficazes mesmo em pequeno número. Num modelo murino de colite autoimune, semelhante à doença inflamatória intestinal humana, as células CAR-Treg anti-CEA (Antígeno CarcinoEmbrionário) foram eficazes no alívio dos sintomas de colite e na redução da progressão para câncer de cólon. De forma similar, em modelo murino de esclerose múltipla, a injeção de CAR-Treg anti-MOG (Glicoproteína da Mielina de Oligodendrócitos) por via intranasal levou a uma melhora significativa dos sintomas neurológicos nos animais.
Uma terceira estratégia bastante promissora foi descrita recentemente pro Ellebrecht et al, e consiste na construção de CAAR-T, linfócitos T que expressam receptores quiméricos contra auto-anticorpos. O pênfigo vulgar é uma bulose sistêmica grave caracterizada pela produção de anticorpos contra desmogleína-3 (Dsg-3), uma proteína dos desmossomos, estruturas de junção celular fundamentais para a manter a integridade dos epitélios. O CAAR-T anti-Dsg3 foi capaz de reconhecer as células B produtoras desses autoanticorpos e eliminá-las em modelo pré-clínico. No momento, essa estratégia está em estudo clínico fase 1.
No âmbito do tratamento de doenças infecciosas com linfócitos CAR-T, sem dúvida o HIV foi o mais estudado. Algumas das primeiras tentativas de eliminação viral datam dos trabalhos pioneiros, ainda na década de 90, liderados pelo Dr. Carl June. Os linfócitos CAR-T inicialmente desenvolvidos não possuíam domínios coestimulatórios, por isso sua proliferação e persistência in vivo eram limitadas. Além disso, utilizavam o CD4 como domínio extracelular, o que tornava a célula suscetível à infecção lítica pelo HIV. Desde então, novos modelos de CAR foram desenvolvidos, utilizando, por exemplo, domínios extracelulares com especificidade para diferentes regiões da gp120, a proteína do envelope viral que se liga ao CD4 e o seu co-receptor CCR5; o knockout do gene CCR5 nas células CAR-T; e a expressão do CAR associada a inibidores de fusão de membrana. Outro desafio na cura do HIV consiste na eliminação dos reservatórios virais em estado de latência. Uma estratégia em estudo clínico fase 1 testa a associação de células CAR-T com drogas reversoras de latência. No entanto, as tentativas de tratamento do HIV com linfócitos CAR-T até o momento falharam em mostrar supressão a longo prazo da replicação viral.
Outros modelos de CAR, ainda em fase pré-clínica inicial e com eficácia limitada, visam a eliminação dos vírus das hepatites B e C, além de patógenos oportunistas em pacientes imunossuprimidos, como CMV, EBV e Aspergillus. Embora a enorme demanda por novos tratamentos, questões de segurança tornam-se bastante expressivas nesse contexto, uma vez que as infecções ocorrem em órgãos vitais, onde o dano celular induzido pela terapia pode ser catastrófico.
Além das doenças infecciosas e autoimunes, recentemente o horizonte de possibilidades das células CAR-T foi expandido, ao demonstrar a possibilidade de reverter fibrose e senescência, dois processos considerados terminais do ponto de vista clínico. Células CAR-T anti-FAP (Proteína de Ativação dos Fibroblastos) foram capazes de reverter a fibrose e restaurar a função cardíaca após injúria muscular hipóxica em modelo murino, sem efeitos off-target ou prejuízo para cicatrização de feridas. A senescência, estado celular caracterizado pela parada de proliferação e um programa secretório capaz de modular o microambiente, está ligada a diversas patologias degenerativas e câncer. Amor et al. identificaram a uPAR (Ativador de Plasminogênio tipo uroquinase) como uma proteína de membrana com expressão aumentada consistentemente nas células senescentes. Linfócitos CAR-T anti-uPAR foram capazes de eliminar células senescentes in vitro e in vivo, em dois modelos murinos, com recuperação da função tecidual e sem efeitos nocivos notáveis.
Em linhas gerais, a imunoterapia torna-se viável quando há expressão ou superexpressão de antígenos de membrana específicos nas células patológicas, e a formação de memória imunológica beneficia particularmente as doenças que necessitam de supressão continuada. A terapia com células CAR-T trouxe uma mudança de paradigma nas doenças oncológicas, e tem potencial para causar efeito semelhante em doenças crônicas, com redução significativa da morbimortalidade e melhora da qualidade de vida dos pacientes e seus familiares.
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