O intestino e o sistema imune
29 de abril de 2019
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Por: Ana Caetano Faria, médica pesquisadora do Departamento de Bioquímica e Imunologia da UFMG
 
O cirurgião francês René Leriche dizia que a “saúde é a vida no silêncio dos órgãos”(1). Nada mais verdadeiro. Quando nos lembramos que temos estômago ou fígado é porque eles não estão funcionando normalmente. Talvez o órgão cujo silêncio seja mais eloquente é o intestino porque ele não somente trabalha diariamente nas suas atividades de absorção de nutrientes mas também em funções imunológicas. Estamos acostumados com a ideia de que o trato gastrointestinal é o local de digestão e absorção dos alimentos, mas há várias décadas os imunologistas mostraram que a mucosa do intestino aloja a maior coleção de células imunes do corpo e que estas estão em atividade contínua, intensa e silenciosa.
 
Sabemos que a mucosa intestinal humana tem uma área total de 300 m2 dobrados em vilosidades e microvilosidades e que essa vasta superfície de contato do corpo com o meio externo é constantemente banhada por uma camada de muco contendo componentes da dieta e da microbiota (2). Esses estímulos (ou antígenos) naturais não são negligenciáveis. Avalia-se que nós ingerimos aproximadamente 190 gramas de proteínas por dia sendo que uma parte dessas proteínas não é digerida e chega inteira à circulação. Por outro lado, a microbiota intestinal contém 100 trilhões de bactérias comensais de 1200 espécies diferentes com uma atividade metabólica equivalente àquela do fígado e o peso de um verdadeiro órgão do corpo: 1 quilo e meio (3).
 
A descoberta, nas últimas décadas, de que a microbiota intestinal e os componentes dietéticos exercem funções até então insuspeitas no sistema imune trouxe várias informações importantes sobre as doenças humanas e sobre novas alternativas terapêuticas baseadas na manipulação desses componentes.
 
Vários componentes da dieta têm ação direta nas células do sistema imune e podem modificar a reatividade imunológica. As proteínas da dieta são estímulos fundamentais no início da vida para a maturação do sistema imune (4) e a ingestão proteica insuficiente, ainda que sem causar desnutrição aparente, pode ter consequências deletérias na imunidade do bebê principalmente no período pós-desmame. As vitaminas A, C e D têm ação direta nos linfócitos e em outras células imunes presentes no intestino estimulando sua atividade anti-inflamatória e anti-oxidante (5, 6, 7). Assim, a deficiência de vitamina A pode causar não somente os defeitos já relatados na pele e na visão como também pode perturbar a homeostase intestinal agravando doenças inflamatórias intestinais em indivíduos suscetíveis. Até os minerais da dieta têm efeitos imunológicos.
 
O sal de cozinha (NaCl), por exemplo, quando ingerido em excesso, pode desencadear, além dos seus efeitos cardiovasculares deletérios, ativação de linfócitos inflamatórios Th17 e agravar doenças inflamatórias crônicas como a esclerose múltipla e a colite ulcerativa (8,9). Por outro lado, alguns lipídeos, como o ômega 3, têm ação direta em receptores de linfócitos e podem regular sua atividade inflamatória (10).
 
O componente responsável pela pungência da pimenta vermelha, a capsaicina, também apresenta efeitos anti-inflamatórios importantes em modelos de doenças autoimunes e na aterosclerose (11,12). Assim, uma vasta gama de substâncias presente nos alimentos apresenta funções imunológicas e algumas delas vêm sendo estudadas como ferramentas de intervenção imunológica no curso de doenças crônicas.
 
As descobertas incríveis sobre a microbiota intestinal possibilitadas pelas novas metodologias de sequenciamento genético têm revelado também o papel fundamental das bactérias comensais no funcionamento normal do nosso sistema imune e de outros sistemas do corpo. Vários estudos mostram que a nossa microbiota se estabelece muito cedo na vida e que a sua composição é influenciada por fatores como o tipo de parto, o aleitamento, a alimentação que adotamos assim como o uso de antibióticos e conservantes alimentares (13, 14). Perturbações na diversidade dessa microbiota (disbiose) desencadeada por esses fatores externos têm sido relacionadas ao desenvolvimento de doenças tão diversas como as alergias, as doenças autoimunes e inflamatórias crônicas e até a obesidade e distúrbios neurológicos graves como o autismo (15).
 
Em seu contexto normal, as bactérias comensais que habitam o intestino exercem funções críticas na digestão de alimentos como fibras produzindo ácidos graxos de cadeia curta que, por sua vez, têm ação anti-inflamatória(16), na produção de nutrientes essenciais como vitamina K e na proteção contra a invasão da mucosa por agentes infecciosos. Vários trabalhos têm mostrado também que a disbiose pode ser corrigida e a composição da microbiota restaurada através da introdução de bactérias probióticas capazes de devolver o equilíbrio homeostático das funções imunológicas do intestino e até de exercer atividades anti-inflamatórias em várias doenças tais como alergias e doenças inflamatórias crônicas do intestino (17). Esses probióticos têm sido crescentemente utilizados na clínica com sucesso.
 
O sistema imune no intestino, por outro lado, pode se tornar bastante inflamatório quando a mucosa é invadida por agentes infecciosos tais como parasitas, bactérias patogênicas ou vírus. Nesse momento, reações como diarreia e náuseas que nos impedem de ingerir alimentos são reações protetoras que acompanham a resposta imune inflamatória que controla a infecção (18).
 
Recentemente foi descrito que a drenagem linfática de regiões anatômicas distintas do intestino para os diferentes linfonodos intestinais (mesentéricos) se encarrega de compartimentalizar respostas imunes anti-inflamatórias dirigidas aos componentes da dieta e da microbiota daquelas reações imunes protetoras contra patógenos (19). Ao final, o mais surpreendente é que, após a cura das infecções, seja espontaneamente pela resposta imune do hospedeiro seja pelo uso de antibióticos, a atividade imunológica do intestino retoma sua homeostase robusta e silenciosa.
 
Ana M. Caetano Faria (Professora Titular do Departamento de Bioquímica e Imunologia, ICB, UFMG)
 

  1. Canguilhem, G. O normal e o patológico. 2009. 6ª Edição, Editora Forense Universitária, São Paulo, SP.
  2. Mowat AM, Agace WW (2014) Regional specialization within the intestinal immune system. Nature Reviews in Immunology, 14(10):667-85. doi: 10.1038/nri3738.
  3. Moog F (1981) The lining of the small intestine. Scientific American, 245(5):154-8.
  4. Menezes JS, Mucida D, Cara DC, Alvarez-Leite JI, Russo M, Vaz NM, Faria, AMC (2003) Stimulation by food proteins plays a critical role in the maturation of the immune system. International Immunology, 15:447–455.
  5. Mucida D, Park Y, Kim G, Turovskaya O, Scott I, Kronenberg M, Cheroutre H (2007) Reciprocal TH17 and regulatory T cell differentiation mediated by retinoic acid. Science, 317(5835):256-60.
  6. Sassi F, Tamone C, D'Amelio P (2018) Vitamin D: Nutrient, Hormone, and Immunomodulator. Nutrients, 10(11). pii: E1656.
  7. Carr AC, Maggini S (2017) Vitamin C and Immune Function. Nutrients, 9(11). pii: E1211.
  8. Wu C, Yosef N, Thalhamer T, Zhu C, Xiao S, Kishi Y, Regev A, Kuchroo VK (2013) Induction of pathogenic TH17 cells by inducible salt-sensing kinase SGK1. Nature, 496(7446):513-7.
  9. Aguiar SLF, Miranda MCG, Guimarães MAF, Santiago HC, Queiroz CP, Cunha PDS, Cara DC, Foureaux G, Ferreira AJ, Cardoso VN, Barros PA, Maioli TU, Faria AMC (2018) High-Salt Diet Induces IL-17-Dependent Gut Inflammation and Exacerbates Colitis in Mice. Frontiers in Immunology, 8:1969.
  10. Fritsche KL (2015) The science of fatty acids and inflammation. Advances in Nutrition, 6(3):293S-301S.
  11. Chen KS, Chen PN, Hsieh YS, Lin CY, Lee YH, Chu SC. (2015) Capsaicin protects endothelial cells and macrophage against oxidized low-density lipoprotein-induced injury by direct antioxidant action. Chemical and Biological Interaction, 228:35-45.
  12. Nevius E, Srivastava PK, Basu S (2012) Oral ingestion of Capsaicin, the pungent component of chili pepper, enhances a discreet population of macrophages and confers protection from autoimmune diabetes. Mucosal Immunology, 5(1):76-86.
  13. Macpherson AJ, de Agüero MG, Ganal-Vonarburg SC. (2017) How nutrition and the maternal microbiota shape the neonatal immune system. Nature Reviews in Immunology, 17(8):508-517.
  14. van den Elsen LWJ, Garssen J, Burcelin R, Verhasselt V (2019) Shaping the Gut Microbiota by Breastfeeding: The Gateway to Allergy Prevention? Frontiers in Pediatrics, 27;7:47.
  15. Gentile CL, Weir TL (2018) The gut microbiota at the intersection of diet and human health. Science, 362(6416):776-780.
  16. Maslowski KM1, Vieira AT, Ng A, Kranich J, Sierro F, Yu D, Schilter HC, Rolph MS, Mackay F, Artis D, Xavier RJ, Teixeira MM, Mackay CR (2009) Regulation of inflammatory responses by gut microbiota and chemoattractant receptor GPR43. Nature, 461(7268):1282-6.
  17. Miquel S, Martín R, Rossi O, Bermúdez-Humarán LG, Chatel JM, Sokol H, Thomas M, Wells JM, Langella P. (2013) Faecalibacterium prausnitzii and human intestinal health. Current Opinion in Microbiology, 16(3):255-61.
  18. Wang A, Huen SC, Luan HH, Yu S, Zhang C, Gallezot JD, Booth CJ, Medzhitov R (2016) Opposing Effects of Fasting Metabolism on Tissue Tolerance in Bacterial and Viral Inflammation. Cell, 166(6):1512-1525.
  19. Esterházy D, Canesso MCC, Mesin L, Muller PA, de Castro TBR, Lockhart A, ElJalby M, Faria AMC, Mucida D (2019) Compartmentalized gut lymph node drainage dictates adaptive immune responses. Nature. 2019 Apr 15.
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