Um gene bastante ativo nos pulmões de pessoas que sofrem de problemas crônicos como hipertensão e doença pulmonar obstrutiva pode ser a chave para entender por que estes pacientes têm maior risco de desenvolver quadros graves de Covid-19. E também pode ser a chave para o desenvolvimento de medicamentos contra a doença. É o que sugere um grupo de cientistas da USP em um artigo compartilhado no repositório medRxiv em formato preprint.
Usando técnicas de bioinformática e uma abordagem da biologia de sistemas, os pesquisadores investigaram se a expressão de um gene chamado ACE2 em células do pulmão é diferente para pacientes de doenças crônicas e para indivíduos saudáveis. Quando um gene está mais expresso, significa que ele está ativo e produzindo a proteína que codifica.
Segundo Helder Nakaya, professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da USP e coordenador da pesquisa, como o Sars-CoV-2, o causador da Covid-19 é um vírus novo para os cientistas, as hipóteses do estudo foram formuladas a partir do que se sabia sobre o coronavírus que causou a epidemia de Sars em 2003. Já se sabia daquela época, por exemplo, que o vírus da Sars usava a proteína codificada pelo ACE2 para infectar células humanas. No começo de março, uma equipe alemã demonstrou, em um trabalho publicado na revista Cell, que o Sars-CoV-2 infecta as células do pulmão seguindo o mesmo caminho de seu parente mais velho.
Mineração de dados e comparações
Para comparar a expressão de ACE2 em pacientes com doenças crônicas e os indivíduos do grupo controle, os pesquisadores da USP trabalharam com dados públicos da plataforma Medline. Eles levantaram mais de 8 mil artigos científicos indexados na plataforma que abordavam as doenças de interesse para o estudo, incluindo hipertensão, diabete, doenças cardiovasculares, doenças pulmonares, insuficiência renal crônica, câncer de pulmão e até tabagismo. Na sequência, mineraram os textos do levantamento inicial para filtrar apenas aqueles que tratavam dos genes relacionados a cada doença – entre eles, estava o ACE2.
A partir dos dados desses artigos, os pesquisadores puderam analisar mais de 700 transcritomas de amostras pulmonares de pacientes com comorbidades associadas à Covid-19. Transcritoma é um conjunto de moléculas de RNA. Por serem transcrições de pedaços do DNA, essas moléculas permitem aos cientistas identificar os genes que estão ativos em uma determinada célula. A quantidade de moléculas de RNA idênticas também é relevante, porque permite que os pesquisadores determinem quais genes estão mais ou menos expressos – ou seja, produzindo mais ou menos proteína.
O grupo liderado pelo professor da FCF descobriu que o gene ACE2 estava altamente ativo em pacientes com essas doenças, quando comparados ao grupo controle. A única doença crônica que ficou de fora foi a diabete tipo 2, pois não havia na base usada pelos pesquisadores dados para fazer a comparação.
Agora, a hipótese é que, quanto mais ativo estiver o ACE2 nas células dos pulmões, maior a chance de uma pessoa desenvolver um quadro severo de Covid-19. Para provar a associação, no entanto, ainda faltam experimentos de laboratório, já que o estudo foi feito em computadores. Nakaya conta que foi uma primeira experiência de trabalho totalmente não presencial, da qual participaram vários pesquisadores. “Todo mundo conectado, coordenado on-line e usando dados públicos para criar hipóteses e usar as ferramentas e conjuntos de dados certos”, conta o professor.
Além da associação entre o gene ACE2 e as comorbidades para a Covid-19, os pesquisadores também encontraram outros genes que podem ter papel importante na infecção pelo novo coronavírus e são potenciais alvos para o desenvolvimento de medicamentos. “A gente também foi procurar saber quais eram os genes associados ao ACE2, que regulam o ACE2”, diz Nakaya. Um deles, o RAB1A, é conhecido por seu papel em infecções por outros vírus. Entre os demais genes, alguns ainda estão envolvidos em processos epigenéticos.
Os resultados do estudo trazem desdobramentos. De acordo com o coordenador, o grupo já está investigando a relação da Covid-19 com outros tecidos do corpo humano e outras doenças. “Estamos analisando amostras de mucosa nasal de crianças, adultos e idosos para ver se os níveis do gene aumentam com a idade. Vamos olhar para outros genes também. Estou apostando no RAB1A, que pode ser interessante porque existe evidência para outros vírus”, comenta o pesquisador.
Fonte: Jornal da USP
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