Por: João Viola, pesquisador do Instituto Nacional de Câncer (Inca)
O câncer é um dos principais problemas de saúde pública mundial e uma das principais causas de morte entre crianças e adultos. Segundo a estimativa da incidência e mortalidade por câncer do Instituto Nacional de Câncer (INCA, 2018), as neoplasias são a segunda causa de morte por doença no Brasil. O INCA prospecta que ocorrerão 600 mil novos casos de câncer por ano no Brasil no biênio 2018-2019.
Além disso, estima-se que em 2020 o número de casos de doenças neoplásicas no Brasil seja da ordem de 15 milhões. Devido ao envelhecimento da população brasileira demonstrada pelas estatísticas oficiais do IBGE, o INCA estima que nos próximos 20 anos as neoplasias devem ser a primeira causa de morte na população brasileira, superando as doenças cardiovasculares. Segundo essas estimativas, os crescimento das incidências das doenças neoplásicas deve ser considerada como um importante problema de saúde publica para o Brasil.
O câncer é uma doença heterogênea composta por mais de 100 doenças diferentes, determinando que o estudo das suas causas, incluindo a incidência/prevalência, diagnóstico, fisiopatologia e tratamento deve ser específico para cada tipo de câncer. Entretanto, a principal característica do câncer é um descontrole nas vias que regulam a proliferação e morte celular, afetando a homeostase tecidual. O desenvolvimento de uma célula tumoral ocorre através de uma sucessão de eventos mutacionais cumulativos de origem hereditária ou adquirida, que estão estritamente relacionadas com fatores genéticos e ambientais. Em determinado momento, a célula perde o controle dos processos de divisão e diferenciação celular, tornando-se uma célula neoplásica. Entretanto, ao longo do processo de transformação maligna, as células tumorais devem ser capazes de escapar dos mecanismos de defesa do organismo para gerar doença, como a resposta imune.
Os princípios básicos sobre imunidade anti-tumoral avançaram bastante a partir do final da década de 50 do século passado, quando Lewis Thomas desenvolveu a hipótese de que o sistema imunológico teria a capacidade de reconhecer e eliminar células tumorais geradas durante um processo de transformação celular maligna.No final dos anos 60, McFarlane Burnet definiu o termo vigilância imunológica. Ele propôs que o sistema imunológico estaria em um estágio de constante alerta para resolver o aparecimento de antígenos tumorais estranhos que pudessem causar algum dano ao organismo. Esses conceitos contribuíram de forma definitiva para a compreensão atual sobre a imunidade de tumores, onde o reconhecimento de células tumorais pelo sistema imunológico ocorre frequentemente, em diversas etapas e através de diferentes componentes.
Em situações normais, o organismo é capaz de destruir as células transformadas antes mesmo que ocorra sua malignização ou ainda combater células tumorais já formadas que possam levar ao câncer. Contudo, o estabelecimento de um tumor pode acontecer através de falhas do sistema imunológico nesse combate, seja pelo aparecimento de mecanismos de escape tumoral, ou ainda, por uma deficiência do sistema imune do organismo, devido as imunodeficiências ou ao uso de medicamentos imunossupressores.
Além disso, deve ser ressaltado que algumas infecções virais estão relacionadas com a patogênese de tumores. Estas evidencias demonstram que o surgimento de alguns tipos de tumores malignos ocorrem com maior incidência em indivíduos imunocomprometidos, indicando claramente que o sistema imunológico previne o desenvolvimento de tumores em indivíduos sadios, seja através da imunidade gerada contra patógenos externos ou através da eliminação de células com potencial oncogênico.
Podemos definir que o sistema imune é o conjunto de células e moléculas responsáveis pela conservação da homeostasia tecidual através do reconhecimento de padrões de injuria celular e manutenção de tecidos próprios ao organismo. Com essa definição, percebemos que a ativação do sistema imune envolve a participação de vários tipos celulares e mecanismos efetores presentes em diferentes órgãos e tecidos.
Há uma regulação estreita de cada um dos efeitos gerados por esses componentes e a perda do controle da resposta imunológica pode levar ao aparecimento de um conjunto amplo de doenças, como alergias, inflamações, doenças auto-imunes e câncer. Devemos compreender que a resposta imune anti-tumoral está muito relacionada aos mecanismos de tolerância imunológica, que se caracteriza pela ausência de resposta imunológica durante um estímulo antigênico. Este conceito engloba diversos mecanismos de inativação ou eliminação de células auto-reativas capazes de desenvolver uma resposta imunológica contra o próprio organismo. Como as células neoplásicas são células do próprias, para haver a reposta anti-tumoral, deve ocorrer a quebra da tolerância do sistema imune contra os antígenos tumorais.
O reconhecimento e a eliminação de células tumorais acontece frequentemente no organismo através da geração de uma imunidade anti-tumoral, que conta com a participação de diversos tipos celulares que estão interconectados. Entretanto, os tumores são capazes de desenvolver mecanismos de resistência à resposta imunológica gerada pelo organismo e escapar do combate do sistema imune. Dentre os mecanismo de escape frequentemente encontrado em tumores, podemos descrever a expressão de moléculas inibitórias pelas células tumorais. Essas moléculas inibem ou impedem a ativação de células imunes, levando a eliminação ou inibição destas células que entram em contato com o tumor.
Nos últimos anos muito foi investido em pesquisa e desenvolvimento de novas abordagens para o tratamento do câncer. Em associação aos tratamentos convencionais, como radioterapia e quimioterapia, o desenvolvimento das terapias alvo-específicas deram um grande salto na qualidade do tratamento dos pacientes com câncer. Entretanto, o grande avanço nos anos recentes na terapia do câncer, está no desenvolvimento de novos tratamentos associados a imunoterapia. Todos os tratamentos que apresentam como base a utilização das imunoterapias, tem em comum a tentativa de estimular o organismo para responder contra as células tumorais e bloquear o escape da resposta imune.
Várias imunoterapias anti-tumorais experimentais foram desenvolvidas nos últimos anos com esse objetivo, incluindo as terapias de transferência de células imunes para os pacientes com câncer, chamadas de terapias de transferência adoptivas ou as vacinas terapêuticas baseadas em células imunes. Entretanto, as imunoterapias que se baseiam na inibição do chamado checkpoint imunológico ganharam grande destaque recentemente. Esta terapia tem como objetivo central bloquear um conjunto de moléculas que inibem a resposta imune e desta forma aumentam a resposta anti-tumoral. Como este mecanismo está estritamente relacionado com o desenvolvimento de tolerância imunológica, esta abordagem tem como objetivo central quebrar um dos mecanismos de desenvolvimento de tolerância do sistema imune contra células próprias e em consequência também ao tumor.
Podemos simplificar este mecanismo como “a inibição do inibidor”, inibindo um dos freios da resposta imune. As imunoterapias baseadas na inibição do checkpoint imunológico está revolucionando o tratamento anti-tumoral, apresentando resultados excelentes para vários tipos de tumores. Demonstrando a sua importância, o Nobel de Fisiologia e Medicina de 2018 concedeu o premio para James (Jim) Allison e Tasuku Honjo, que foram pioneiros na descrição desses mecanismos, como descrito na sua premiação “for their discovery of cancer therapy by inhibition of negative immune regulation”.
Apesar da grande revolução que as imunoterapias anti-tumorais estão imprimindo na área de tratamento de neoplasias, muitos desafios ainda temos pela frente. O primeiro deles são os seus efeitos adversos, pois como estas terapias estão baseadas na quebra da tolerância imunológica, muitos pacientes apresentam como efeitos adversos o desenvolvimento de doenças auto-imunes. Além disso, a resposta as imunoterapias não são homogêneas, ou seja, nem todos os tipos tumorais ou mesmo todos os pacientes desenvolvem uma boa resposta com essas terapias, ainda apresentando escape e falha terapêutica. Sendo assim, somente mais pesquisas na área poderá gerar novos conhecimentos que podem minimizar seus efeitos adversos, assim como, aumentar a sua eficácia terapêutica.
Finalmente, um dos principais problemas das novas terapias anti-tumorais, incluindo as imunoterapias, são o seu elevado custo. Devemos ressaltar que a terapia anti-tumoral deve ser feita de forma associativa, ou seja, as terapias já estabelecidas, incluindo radioterapia e quimioterapia, não são substituídas com a inclusão das novas terapias, incluindo as terapias alvo-específicas e as imunoterapias. Nesse caso, a inclusão de novas terapias deve ser feita em associação com as terapias clássicas, elevando muito o custo para o tratamento.
Deve-se também ressaltar que novas terapias normalmente apresentam um custo muito elevado devido a baixa competitividade da indústria farmacêutica, que está protegida por patentes. Sendo assim, somente o incentivo a pesquisa e investimento em ciência brasileira poderá reverter esse panorama em médio e longo prazo, onde devemos ter o incentivo para pesquisas na nossa população associado ao desenvolvimento de tecnologia nacional. Somente um programa de Estado que perpassa diferentes governos, independente de suas diretrizes politicas, poderão dar uma resposta para o nosso sistema de saúde.
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