O post do SBlogI que virou colaboração internacional sobre a dinâmica do HLA-G
11 de novembro de 2020
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Autor: Dinler Amaral Antunes, Bacharel em Biomedicina pela UFRGS, Mestrado e Doutorado pelo PPGBM/UFRGS e pós-doutorado pela Rice University (Texas/EUA).

A minha professora de Bioquímica e tutora na UFRGS, Carmem Gottfried, uma vez nos falou sobre serendipidade na pesquisa. Esta palavra estranha se refere a coisas que acontecem por acaso, oportunidades que surgem, consequências inesperadas de atividades que desempenhamos. E obviamente a ciência está cheia de exemplos de serendipidade. A publicação recente de um artigo nosso na Frontiers in Immunology me fez pensar na inesperada cadeia de eventos que nos trouxe até aqui; na qual o SBlogI desempenhou um papel central.

Figura 1. Estrutura e dinâmica da moléculas completa de HLA-G1 transmembrana. Imagem publicada em Arns et al., 2020. A. Representação em cartoon da molécula completa. B. Sistema completo incluindo a bicamada lipídica, água e íons. C. Oscilações (tilting motion) dos domínios extracelular e transmembrana durante a simulação. D. Distribuição, em uma análise de componentes principais, das conformações observadas em três réplicas da simulação do sistema completo, mostrando grande sobreposição de conformações. Ou seja, demonstrando consistência nos resultados e estabilidade do sistema.

Em Novembro de 2013 eu participei de um Keystone Symposium on Vaccines, realizado no Rio de Janeiro, e meu trabalho chamou a atenção do Dr. João Carmo. Poucos meses depois eu publiquei um artigo com dinâmica molecular da protease do HIV-1, e recebi o convite do Dr. João Carmo para escrever sobre o trabalho no SBlogI. Este foi o meu primeiro post no blog, e nas postagens seguintes eu resolvi abordar alguns temas de imunoinformática que eram mais relacionados a minha pesquisa de pós-graduação (I, II e III). Não havia nenhuma estratégia de longo prazo envolvida na escolha destes tópicos. Apenas o desejo de compartilhar alguns dos problemas de pesquisa que me interessavam, envolvendo a análise estrutural de complexos peptídeo-HLA. No final de 2014 eu iniciei um pós-doutorado na Rice University nos Estados Unidos, mas continuei trabalhando com modelagem de complexos peptídeo-HLA e continuei contribuindo com o SBlogI.

Algum tempo depois os meus posts chamaram a atenção de uma aluna de Doutorado da USP de Ribeirão Preto, que estava estudando a estrutura e a dinâmica de moléculas de HLA-G. Esta aluna, Thaís Arns, estava sendo orientada pelos professores Eduardo Donadi e Silvana Giuliatti, e ficou empolgada de ver outro pesquisador Brasileiro trabalhando com modelagem de HLAs. Ela seguiu acompanhando as minhas postagens e mais tarde resolveu fazer contato; o que abriu caminho para dois estágios de curta duração em que ela trabalhou comigo no Departamento de Computação da Rice University, sob orientação da professora Lydia Kavraki.

Figura 2. Estrutura e dinamica das diferentes isoformas da molécula de HLA-G1. Imagem publicada em Arns et al., 2020. A. Representação esquemática do monômero de HLA-G1 ligado a membrana. B. Representação esquemática do díemro de HLA-G1 ligado a membrana. C. Representação esquemática do dímero solúvel de HLA-G1.

O trabalho da Thaís envolvia inicialmente a modelagem e simulação computacional da molécula completa do HLA-G1 transmembrana (Figura 1), e também do dímero solúvel de HLA-G1. Embora as estruturas do monômero e do dímero do HLA-G1 já haviam sido descritas, estas estruturas estavam incompletas. Além disso, nada se sabia sobre a dinâmica destas moléculas. Por exemplo, foi descrito que o dímero de membrana do HLA-G1 formava um ângulo de 45 graus (Figura 2B), o qual facilitava o acesso de regiões do domínio alfa-3 para a interação com receptores de leucócitos, incluindo receptores ILT4 em células Natural Killer (NK). Mas seria este ângulo imposto pela forma como os protômeros (partes do dímero) estão ancorados na membrana e ligados por uma ponte dissulfeto? Ou seria esta uma conformação estável que se manteria também no dímero solúvel?

As nossas simulações com o dímero solúvel mostraram que os protômeros são na verdade completamente livres para rotacionar um em relação ao outro (Figura 2C), o que oferece oportunidades completamente diferentes de interação com receptores na superfície de leucócitos. Por exemplo, o modelo de interação entre HLA-G1 e ILT4 proposto em estudos anteriores mostra o ILT4 “se aproximando” pelo lado oposto a membrana (Figura 3A). No entanto, na ausência da membrana e considerando a flexibilidade rotacional do dímero, uma análise de docking proteína-proteína utilizando o servidor ClusPro identificou um modo de ligação alternativo, em que ILT4 “se aproxima” pela base do domínio alfa-3 (Figura 3C).

Figura 3. Modos de interação identificados pelo servidor ClusPro. Imagem publicada em Arns et al., 2020. A. Modo de ligação proposto em estudos anteriores. C. Modo de ligação alternativo proposto pelo servidor ClusPro. Este modo de interação não seria possível para as isoformas ligadas na membrana, conforme indicado pela colisão destacada em vermelho na imagem B.

Figura 4. Thaís Arns hoje realiza seu pós Doutorado em Luxemburgo, na Europa.

 Além de abrir caminho para novas hipóteses sobre formas de interação do HLA-G com receptores de leucócitos, as quais podem estar diretamente envolvidas com os nuances do papel regulatório das moléculas de HLA-G, este estudo disponibiliza as estruturas 3D geradas (github.com/KavrakiLab/hla-g-models/). Estas estruturas, mais completas do que os cristais disponíveis até então, podem ser utilizadas para futuros estudos estruturais focados na análise de polimorfismos, modelagem e dinâmica de outras isoformas, e interação com outros ligantes de interesse.

Este estudo também estabeleceu uma parceria internacional que continua ativa, envolvendo pesquisadores da USP, da Rice University e da Universidade de Luxemburgo. Após a defesa de seu Doutorado, a Dra. Thaís Arns foi para a Europa (Figura 4), onde hoje desenvolve seu trabalho de pós-doutorado no centro de pesquisa LCSB - Luxembourg Centre for Systems Biomedicine, em Esch-sur-Alzette, Luxemburgo. Seu atual foco de estudo é a proteína DJ-1, alvo de diversas mutações na doença de Parkinson, sob orientação do professor Alexander Skupin. A conexão entre os nossos projetos, materializada agora na forma desta publicação, talvez nunca tivesse ocorrido se não fossem aquelas despretensiosas publicações sobre imunoinformática estrutural no SBlogI. A ciência é cheia de serendipidades, e a comunicação entre pesquisadores e estudantes, por todos os canais possíveis, é essencial para fomentar estes fortuitos e inesperados desfechos.

 

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