Aspectos recentes da Doença de Chagas e da patogenia e alvos terapêuticos da cardiopatia chagásica crônica
15 de abril de 2024
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Autor: Edecio Cunha Neto

Faculdade de Medicina da USP

A Doença de Chagas (DC), causada pelo protozoário Trypanosoma cruzi e transmitida pelo inseto “barbeiro”, é uma doença negligenciada endêmica na América Latina, afetando cerca de 6 milhões de pessoas. Após a fase aguda, se não tratado, o parasito persiste no organismo em pequenas quantidades, sendo parcialmente controlado pela resposta imune, estimulando a inflamação na fase crônica da doença. Não há medicamentos antiparasitários ou vacinas sabidamente eficazes na fase crônica da doença. Embora programas de controle do vetor barbeiro com inseticidas tenham reduzido o número de casos novos no Brasil, a cada ano, são registrados 30 mil casos novos na região, levando a 14.000 mortes/ano e 8.000 recém-nascidos infectados durante a gestação. Estima-se que cerca de 70 milhões de pessoas vivem em áreas de exposição e correm o risco de contrair a doença. No Brasil, são pelo menos 4 mil mortes por ano, representando uma das quatro maiores causas de mortes por doenças infecciosas e parasitárias. Um terço dos pacientes com DC desenvolvem cardiopatia chagásica crônica (CCC), uma miocardiopatia inflamatória que ocorre décadas após a infecção pelo parasito, enquanto a maioria dos pacientes infectados (60%) permanecem assintomáticos na chamada forma indeterminada (FI). A morte ds pacientes com CCC resulta de insuficiência cardíaca ou arritmia, e o transplante cardíaco é a única opção para esses pacientes, muitos dos quais morrem antes de aparecer um doador compatível. A sobrevida na CCC é pior do que em miocardiopatias não inflamatórias. Isto indica a necessidade de aumentar a compreensão dos mecanismos da doença para encontrar tratamentos mais eficazes, além da busca de novos medicamentos antiparasitários. 

Nos últimos anos, pesquisas têm mostrado que a inflamação do miocárdio (miocardite) mediada por linfócitos T, células da defesa que são ativadas pelo T. cruzi ou por componentes do próprio coração, tem um papel importante na CCC. Estudos identificaram uma maior produção das citocinas (fatores inflamatórios) Interferon-gama e TNF-alfa tanto no coração quanto no sangue de pacientes com CCC (PMID: 11488642), o que não é observado nas miocardiopatias não inflamatórias. Isso aparentemente se deve ao fato que as células T de pacientes com CCC se diferenciam mais facilmente em células produtoras de IFN-gama do que os pacientes com a forma indeterminada da DC. Estudos em animais de laboratório mostraram que a exposição crônica a altos níveis de Interferon-gama levou ao aumento de TNF-alfa e o desenvolvimento de uma miocardiopatia dilatada, indicando que o Interferon-gama e TNF-alfa podem ser importantes desencadeadores da CCC. Isso sugere que tratamentos capazes de reduzir a produção de citocinas inflamatórias poderiam atenuar o dano ao coração na CCC. Entretanto, sabe-se que situações associadas à redução da imunidade em pacientes com DC crônica acabam levando à reagudização da doença de Chagas, pois liberam a replicação do parasito (PMID: 38546225). Além disso, nosso grupo mostrou que o bloqueio de TNF-alfa em hamsters cronicamente infectados pelo T. cruzi e já com disfunção cardíaca piorava ainda mais a função cardíaca, sugerindo um papel protetor do TNF-alfa na doença estabelecida (PMID: 17644389 ). Por isso, a modulação imunológica pode não ter boa perspectiva de uso terapêutico na CCC.

Por outro lado, estudos têm mostrado que há diminuição do metabolismo energético no coração de pacientes com CCC PMID: 20676586), principalmente por conta de alterações na mitocôndria, organela responsável pela maior parte da produção de energia no coração. Essa diminuição é mais acentuada na CCC que em miocardiopatias não inflamatórias (PMID: 34867990). Nosso grupo demonstrou que o IFN-gama e o TNF-alfa, presentes no coração de pacientes com CCC, são capazes de reduzir a produção de energia por mitocôndrias das células cardíacas, bem como de reduzir a expressão de proteínas do metabolismo energético mitocondrial, de forma semelhante à observada no coração de pacientes com CCC (PMID: 34867992). Dessa forma, fica estabelecido um vínculo entre inflamação e a produção deficiente de energia no coração. Diversos estudos mostraram o papel de variantes genéticas em genes envolvidos na resposta imune ao T. cruzi em facilitar a progressão para a CCC. Um estudo genético recente, feito em famílias com vários casos da DC, mostrou que variantes raras em genes inflamatórios e mitocondriais se associavam com os pacientes com CCC (PMID: 33660144). Resultados ainda não publicados mostram que células cardíacas com essas variantes mitocondriais apresentam maior queda de produção de energia em presença de IFN-gama e TNF-alfa do que células cardíacas sem essas variantes. Interpretamos esses resultados como indicadores que a variante mitocondrial aumenta a suscetibilidade das células cardíacas ao efeito danoso das citocinas inflamatórias. Acreditamos que essa disfunção mitocondrial induzida por citocinas seja uma das causas do pior prognóstico da CCC quando comparada a miocardiopatias não inflamatórias. Consequentemente, propusemos a hipótese de que fármacos capazes de neutralizar essa disfunção mitocondrial induzida por citocinas podem ajudar a restaurar a produção de energia no coração de pacientes CCC. Nosso grupo está no momento fazendo uma busca entre drogas já licenciadas para outros usos em humanos, para identificar drogas com essa capacidade, uma estratégia chamada reposicionamento de drogas. A vantagem dessa abordagem é a possibilidade de se fazer testes clínicos rapidamente com as drogas que tiverem esse efeito. 

Outro aspecto que tem aparecido recentemente é a observação de que os pacientes que progridem para a CCC (PMID: 25678239), ou para a CCC grave (PMID: 34604362) têm maior detecção do DNA do T. cruzi no sangue do que aqueles que persistem na forma indeterminada da DC, sugerindo que há uma falha no controle do parasitismo nos pacientes com CCC, que poderia talvez estar associada ao dano cardíaco. Corroborando essa possibilidade, estudos recentes têm mostrado que os pacientes que evoluem para as formas graves da CCC apresentam inicialmente uma maior detecção do DNA do T. cruzi e níveis reduzidos de mediadores inflamatórios da resposta inata em amostras de soro (PMID: 38203212). Na mesma linha, estudos recentes mostraram que pacientes com manifestações leves da CCC apresentam evidências de uma resposta citotóxica de linfócitos T CD8 e NK mais intensa do que os pacientes com as formas graves (PMID: 28003350). Isso corrobora com a hipótese de que os pacientes que evoluem para a forma grave da doença têm uma menor capacidade de destruir o T. cruzi, e que níveis cronicamente aumentados do parasito poderiam desencadear uma resposta inflamatória mediada por IFN-gama mais intensa do que naqueles com menor carga parasitária, levando ao dano ao coração. 

Por sua vez, isso sugere que um tratamento antiparasitário realmente eficaz poderia levar a um melhor prognóstico entre os pacientes com DC. Entretanto, os tratamentos disponíveis atualmente (benznidazol) apresentam efeitos adversos frequentes e não estão associados à parada da evolução para a CCC. Novos protocolos terapêuticos, e novas drogas usadas em combinação ou não com o benznidazol, estão entrando em ensaios clínicos correntemente.

PUBLICADO POR
SBI Comunicação
Colunista Colaborador
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