COVID-19: a vez das células T?
21 de agosto de 2020
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Por: Martín Bonamino*

No início da pandemia tudo girava em torno dos anticorpos: o teste rápido vs os testes de laboratório; IgM vs IgG; Inquéritos sorológicos e decaimento de títulos de anticorpos; passaporte imunológico para pessoas com IgG anti SARS-CoV-2.
A imunologia tem dessas coisas. Às vezes, em meio ao pandemônio da pandemia, algumas coisas importantes recebem menos atenção do que deveriam.
O fato é que nas últimas semanas (re)surgiu na discussão uma população de linfócitos muito relevante. Nenhuma novidade, na verdade. Os linfócitos T são sabidamente células com funções imunológicas de efetuação de respostas antivirais, seja através da produção de citocinas ou eliminando ativamente células infectadas.
Alguns grupos foram então analisar as células T para verificar se elas seriam capazes de reconhecer os antígenos do SARS-CoV-2. No caso dos linfócitos T, estes antígenos são enxergados como fragmentos das proteínas do vírus que são carregados nas moléculas do complexo principal de histocompatibilidade (chamadas de HLA em humanos). 
Utilizando misturas destes fragmentos das proteínas (conhecidos como peptídeos), os investigadores conseguem cobrir as diferentes possibilidades de peptídeos derivados de cada proteína do vírus. Estas misturas de fragmentos são conhecidas como pools quando se referem a vários pedaços (que podem, por exemplo, cobrir uma proteína específica) ou megapools, quando se referem a grandes conjuntos de fragmentos que podem cobrir várias proteínas ou até mesmo a todas as proteínas do vírus.
Usando estes pools e megapools de peptídeos virais, um grupo de pesquisadores dos EUA demonstrou que, tanto linfócitos T CD4+ quanto CD8+, eram capazes de reconhecer proteínas não só da famosa proteína S (Spike), mas também de outras proteínas do SARS-CoV-2 1. Quando enxergavam estes peptídeos, as células T se ativavam e produziam citocinas, um sinal de que o reconhecimento era funcional. Estes dados colocaram as células T de vez na jogada. Agora não era apenas a produção de anticorpos por células B que importava para o reconhecimento e eventual proteção para a COVID-19, mas as células T poderiam ter um papel relevante.
O mais interessante, no entanto, ainda estava por vir. Um grupo de pesquisa de Estocolmo decidiu analisar os suecos que haviam voltado das férias no norte da Itália, local duramente castigado pela COVID-19. Em uma abordagem interessante, o grupo avaliou células T congeladas de doadores de sangue que realizaram a doação em 2019 (antes da pandemia) ou em 2020. Analisaram também pacientes com formas brandas ou severas da COVID-19 e também os pacientes convalescentes. A estes grupos, foi adicionado também um grupo de indivíduos que conviveu com pacientes infectados, mas não desenvolveu a doença.
Os dados foram muito reveladores. Avaliando a frequência de células T capazes de se ativar ao reconhecer o megapool de peptídeos, os pesquisadores demonstraram que este reconhecimento era raro nas células dos doadores de sangue de 2019 mas relativamente frequente nos indivíduos que doaram em 2020, sugerindo um contato prévio com o vírus que possa ter resultado em células T específicas2. Os pacientes infectados com a doença ativa ou convalescentes apresentaram frequência muito maior de células T reconhecendo os peptídeos do SARS-CoV-2, como esperado. Mas o dado curioso foi que boa parte dos indivíduos que conviveram com pacientes infectados apresentavam uma frequência relativamente alta de células T reconhecendo peptídeos do megapool, sugerindo que estes indivíduos expostos tinham gerado respostas T contra o vírus (potencialmente protetoras?) sem terem ficado doentes. Um dado ainda mais intrigante é que, enquanto os pacientes acometidos pela COVID-19 quase invariavelmente fizeram anticorpos contra o vírus, alguns destes indivíduos expostos, mas não doentes, apresentavam células T contra o vírus sem terem desenvolvido anticorpos detectáveis.
Este dado abre a possibilidade de que talvez o vírus em baixas cargas tenha gerado uma resposta T que o controlou sem produzir anticorpos de forma exuberante, ou que os títulos de anticorpos não foram muito altos e talvez já se encontrassem em doses muito baixas para serem detectados. Em todo caso, estes dados sugeririam uma resposta T na ausência de doses relevantes de anticorpos em uma fração dos indivíduos analisados.
Outra possibilidade é que alguns indivíduos contassem com células T capazes de reconhecer o SARS-CoV-2 mesmo antes de encontrar o vírus. Esta hipótese é ainda mais fascinante, mas está fundamentada em um conceito muito sedimentado na imunologia e que também parece ter sido negligenciado durante o início da pandemia: patógenos semelhantes apresentam frequentemente porções iguais de proteínas, e uma resposta T contra um peptídeo derivado de uma proteína com sequência idêntica em diferentes patógenos pode levar a um reconhecimento cruzado.
O fato é que o SARS-CoV-2, ao contrário do propagado por teorias conspiratórias que atribuem uma origem sintética ou até mesmo extraterrestre ao novo coronavírus, é um vírus que tem parentes próximos na sua filogenia e proteínas muito semelhantes às de outros coronavírus3. Alguns destes vírus, inclusive, circulam amplamente pela população causando gripes sazonais. Seria então até certo ponto esperado que respostas de células T que reconheçam proteínas destes outros vírus promovam um reconhecimento cruzado do vírus causador da COVID-19.
Este reconhecimento cruzado com outros coronavírus foi exatamente o que mostraram os trabalhos de dois grupos em publicações recentes4,5. Os dados destes estudos indicam que as proteínas S, N, NSP3, NSP4, ORF3a, ORF8, NSP7, NSP13 e provavelmente outras, do SARS-CoV-2 são reconhecidos quando megapools de peptídeo são utilizados para estimular células T de indivíduos nunca expostos ao SARS-CoV-2. Estes trabalhos mostraram que isto ocorre frequentemente quando os pacientes foram expostos e tem anticorpos para os vírus sazonais HCoV-OC43, HCoV-NL631, HCoV-229E ou HCoV-HKU1 5. Quantos outros vírus que circulam entre humanos e/ou outras espécies são capazes de gerar células T de memória capazes de reconhecer o SARS-CoV-2? Não sabemos ainda ao certo. Mas algumas destas publicações recentes apontam que entre 20 e 60% da população de diversos países poderia ter células T capazes de reconhecer o novo coronavírus mesmo sem nunca ter encontrado este patógeno antes 1,2,4,5
Quanto tempo duraria este reconhecimento pelas células T? Também não temos certeza, mas estudos recentemente publicados com a análise das células T de pacientes que foram infectados pelos vírus causador da pandemia de SARS indicam que, mesmo após 11 anos, as células T reconhecedoras de peptídeos destes vírus ainda podem ser encontradas no sangue dos indivíduos6, e que estas células também reconheceriam de forma cruzada o SARS-CoV-2 mesmo após 17 anos da infecção pelo SARS-CoV causador da SARS 4.
Estes dados reforçam a ideia de que focar exclusivamente em uma resposta de anticorpos neutralizantes e esquecer das células T no início da pandemia foi, de certa forma, uma miopia imunológica. A queda nos títulos de anticorpos contra o novo coronavírus 7–9, fenômeno também visto na resposta a outros vírus do mesmo tipo, é um fator de confusão para a avaliação em inquéritos sorológicos, para a detecção da história pregressa de infecção e mesmo para a avaliação da suscetibilidade a novas infecções. A avaliação da resposta das células T é metodologicamente mais complexa, mas talvez seja um dado mais robusto em termos de testemunho da história de exposição ao vírus (ou a vírus relacionados) e mesmo de indicativo de proteção.
Se imagina neste momento que as células T pré-existentes poderiam limitar a intensidade da infecção ou mesmo evitar que o paciente adoeça quando exposto ao novo coronavírus. No entanto, ainda não há dados mostrando a proteção para a COVID-19 em indivíduos que possuam estas células T previamente capazes de reconhecer o vírus. Teremos, portanto, que aguardar novos resultados para confirmar (ou não) esta hipótese.
Existe ainda a possibilidade de que ter uma resposta T prévia possa ser um mau negócio e que células anti SARS-CoV-2 preexistentes possam causar mais inflamação e aumentar a gravidade da doença. Não há, no entanto, qualquer evidência sólida ainda que aponte esta pré-resposta de células T como potencialmente nociva. A hipótese mais provável é, portanto, de uma proteção, ainda que parcial.
A este ponto, a possibilidade de uma fração considerável das pessoas já ter uma resposta T pré-montada que possa reconhecer e limitar a infecção pelo SARS-CoV-2 pode impactar os modelos epidemiológicos de infecção na população e de percentuais de pacientes efetivamente infectados até que se atinja a famosa imunidade de rebanho. Talvez estejamos partindo já de um patamar de “previamente imunizados” razoavelmente alto (20%, 30%, 40%?) e isto limite consideravelmente a população de vulneráveis. Esta hipótese ajudaria a explicar por que, mesmo em locais muito castigados pela COVID-19, o percentual de pacientes soroconvertidos é mais baixo que o esperado. Inquéritos epidemiológicos de avaliação de células T reativas aos megapools de peptídeos da SARS-CoV-2 na população pré e pós pandemia certamente já estão em curso e nos ajudarão a entender melhor este cenário.
Da mesma forma, a variabilidade genética da população em termos de HLAs pode impactar a quantidade e qualidade de epítopos de SARS-CoV-2 (e de outros vírus relacionados) apresentados aos linfócitos T, levando a respostas diferenciais em diferentes populações. Nosso grupo está envolvido em estudos que avaliam a coleção de potenciais peptídeos do SARS-CoV-2 apresentados pelos HLAs presentes em diferentes proporções em populações diversas10.
Por último, considerando esta história e o papel de protagonismo que as células T estão assumindo, será fundamental que as vacinas em desenvolvimento sejam capazes de gerar tanto respostas de anticorpos quanto de células T. Desta forma podemos evitar falhas no desenvolvimento, como as que ocorreram com outras vacinas focadas exclusivamente na geração de anticorpos, resultando em baixa proteção. Felizmente esta geração de resposta de anticorpos e de células T parece ser alcançada por ao menos uma das vacinas em desenvolvimento11. Embora conheçamos agora a capacidade de parte destas vacinas de gerar respostas de anticorpos neutralizantes e de células T vírus-específicas, devemos esperar ainda algumas semanas para sabermos se elas realmente protegem os indivíduos da COVID-19, e ainda mais tempo para sabermos a duração desta eventual proteção.
Chegamos assim ao fim desta reviravolta, em que, para satisfação dos “Teólogos” (que, na imunologia, são aqueles que se dedicam a estudar os linfócitos T), as células T assumem um papel mais central nas respostas contra o novo coronavírus. Novos estudos que vem sendo publicados quase que diariamente nos indicarão o real papel desta população de linfócitos na resposta ao SARS-CoV-2.
 
Referências:

  1. Grifoni, A. et al. Targets of T Cell Responses to SARS-CoV-2 Coronavirus in Humans with COVID-19 Disease and Unexposed Individuals. Cell 181, 1489-1501.e15 (2020).
  2. Sekine, T. et al. Robust T cell immunity in convalescent individuals with asymptomatic or mild COVID-19. Cell (2020) doi:10.1016/j.cell.2020.08.017.
  3. Cui, J., Li, F. & Shi, Z.-L. Origin and evolution of pathogenic coronaviruses. Nat. Rev. Microbiol. 17, 181–192 (2019).
  4. Le Bert, N. et al. SARS-CoV-2-specific T cell immunity in cases of COVID-19 and SARS, and uninfected controls. Nature 1–6 (2020) doi:10.1038/s41586-020-2550-z.
  5. Mateus, J. et al. Selective and cross-reactive SARS-CoV-2 T cell epitopes in unexposed humans. Science (2020) doi:10.1126/science.abd3871.
  6. Ng, O.-W. et al. Memory T cell responses targeting the SARS coronavirus persist up to 11 years post-infection. Vaccine 34, 2008–2014 (2016).
  7. Ibarrondo, F. J. et al. Rapid Decay of Anti–SARS-CoV-2 Antibodies in Persons with Mild Covid-19. N. Engl. J. Med. 0, null (2020).
  8. Long, Q.-X. et al. Antibody responses to SARS-CoV-2 in patients with COVID-19. Nat. Med. 26, 845–848 (2020).
  9. Seow, J. et al. Longitudinal evaluation and decline of antibody responses in SARS-CoV-2 infection. medRxiv 2020.07.09.20148429 (2020) doi:10.1101/2020.07.09.20148429.
  10. Pretti, M. A. M. et al. Class I HLA allele restricted antigenic coverage for Spike and N proteins is associated with divergent outcomes for COVID-19. medRxiv 2020.06.03.20121301 (2020) doi:10.1101/2020.06.03.20121301.
  11. Folegatti, P. M. et al. Safety and immunogenicity of the ChAdOx1 nCoV-19 vaccine against SARS-CoV-2: a preliminary report of a phase 1/2, single-blind, randomised controlled trial. The Lancet (2020) doi:10.1016/S0140-6736(20)31604-4.

 
*Martín Bonamino é Pesquisador do Instituto Nacional de Câncer (INCA) e Especialista da FIOCRUZ.
** Os conteúdos publicados no SBlogI são autorais e de responsabilidade dos(as) autores(as), não representando a opinião de qualquer patrocinador da Sociedade Brasileira de Imunologia.

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SBI Comunicação
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