Enquanto a imunidade não vem
16 de abril de 2020
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Comentários sobre a pandemia da COVID-19: "Enquanto a imunidade não vem".
Momtchilo Russo - Professor titular do Depto. de Imunologia do ICB-USP e do Depto de Moléstias Infecciosas da FMUSP.
Vários membros da família Coronaviridae de vírus infectam humanos e causam uma infecção respiratória discreta. No entanto, alguns vírus desta família que infectam animais silvestres que os transmitiram aos humanos causando uma Síndrome Respiratória Aguda Severa (SARS) como é o caso do SARS-CoV-1, da MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio) e do SARS-CoV-2, responsável pela atual pandemia denominada COVID-19 (https://doi.org/10.1038/s41591-020-0820-9).
Em todos os continentes afetados pela pandemia, alardeia-se que estamos em Guerra e no Brasil, o presidente pediu ajuda às forças armadas para combater este inimigo. O problema é que as Forças Armadas não estão equipadas para lidar com infecções. Apesar do cenário trágico em que se encontram alguns países onde são registrados altos números de mortalidade, a visão militarista de que estamos em guerra é uma noção biologicamente incorreta.
Esta visão antropocêntrica, julga ser o homem um ser central no planeta, desprovido de microrganismos e totalmente isolado do meio que o circunda. Nesta visão bélica da infecção atribui-se aos microrganismos invasores a vontade de se apoderar dos homens. Este conceito não se sustenta por várias razões e cito algumas: 1. Como comentado por Miguel Soares (I. Gulbenkian), “a visão militarista não considera que a grade maioria das pessoas mesmo estando infectadas “convivem” com o vírus SARS-CoV2 sem ficarem gravemente doentes. Isto se explica em parte pela capacidade de certos indivíduos de tolerar o vírus sem no entanto, comprometer a imunidade. Embora benéfica para o individuo infectado esta estratégia tem um preço alto, pois facilita o contagio e a propagação do vírus para outros indivíduos mais ou menos susceptíveis de desenvolver a doença”; 2.  Filogeneticamente, o Homo sapiens, surgiu na terra muito depois dos microrganismos e como tal, teve que se adaptar aos microrganismos que já estavam no meio ambiente e somos povoados por microrganismos que constituem a nossa microbiota e que são pelo menos 10 vezes mais numerosos que as nossas células e que, por incrível que pareça, nos ajudam a viver melhor. É óbvio que o vírus não declarou guerra aos humanos.
A humanidade já passou por vários surtos epidêmicos e se adaptou a todos eles. Os gregos e os persas foram os primeiros a observar que os convalescentes de pragas não adoeciam de novo e podiam cuidar dos doentes. Daí surgiu o conceito de Imunidade.
No caso do SARS-CoV-2, o vírus achou por acaso, novos nichos ecológicos para se multiplicar. O vírus pulou dos morcegos para animais silvestres que ao chegaram ao mercado de Wuhan, infectaram os homens. O mundo globalizado tornou-se um meio extraordinário de propagação do vírus. Pandemia, não é uma novidade, pois a gripe dita espanhola, infectou 500 milhões de indivíduos e matou pelo menos 50 milhões de pessoas. A hepatite B é um exemplo de como as condições ambientais permitem a propagação de vírus. Até antes da segunda guerra mundial, a hepatite B era uma doença extremamente rara, porém com a profusão de transfusões de sangue feitas nos soldados feridos, o vírus da hepatite B infectou uma parcela significativa na população humana estabelecendo-se.
A primeira questão que se coloca é porque a COVID-19 se espalha de forma exponencial?
Parte da resposta, é que a população humana, não possui nenhum repertório imunológico para lidar e se adaptar a esta infecção. Cabe aqui afirmar que é o sistema imunológico que nos adapta a conviver com os diferentes microrganismos que nos circundam. Ao contrário do que é voz corrente nos noticiários, o Sistema Imune não combate microrganismos, mas nos adapta a viver com eles.
Então, por que a COVID-19 virou pandemia?
Tomando como exemplo as populações indígenas, que foram severamente atingidas por infecções virais provenientes do contato com colonizadores europeus a explicação seria: Os europeus, já tinham repertório imunológico (memória) para lidar com estas infecções virais, enquanto que os indígenas não tinham. Isto mostra que a memória imunológica das populações é moldado por suas experiências. Como não temos memória imunológica para lidar com o SARS CoV-2, todos os indivíduos são potenciais hospedeiros do vírus. Se nada for feito, a população humana vai se adaptar a esta infecção, pois a COVID-19 apresentar baixa letalidade, mas por ser uma pandemia haverá um número extremamente alto de óbitos e colapso hospitalar (https://doi.org/10.1016/S1473-3099(20)30235-8).
O que podemos fazer?
Primeiro, entender o modo de transmissão do vírus, seu ciclo e sua patologia para depois intervir. O que chama atenção na COVID-19 é a extrema capacidade do vírus em ser transmitido. Algumas possibilidades podem ser aventadas como o fato de indivíduos infectados assintomáticos que não sabem que estão infectados (portadores sãos) ou sintomáticos transmitirem o vírus por muito tempo (~14 dias). Além disto, gotículas e micropartículas do vírus permanecem no meio ambiente de horas a 3 dias.
Segundo, já sabemos qual é o principal receptor (uma enzima que fica na membrana de várias células denominada ACE2) que o vírus utiliza para infectar e quais são as enzimas utilizadas para sua multiplicação. A utilização de uma ou uma combinação de várias drogas poderá contribuir para inibir estas enzimas chaves e consequentemente a sua multiplicação como mostrado em estudo recente na Fiocruz (https://doi.org/10.1101/2020.04.04.020925). Também é possível usar drogas que induzem erros na replicação do vírus.
Terceiro, é possível desenvolver imunizações ativas (vacinas) e passivas (transferência de anticorpos) à exemplo que aconteceu no século passado com os trabalhos pioneiros de Von Behring, prêmio Nobel por seu trabalho sobre terapia de soro contra a difteria e de Pasteur e seus discípulos. Analogamente ao que está acontecendo hoje, a peste bubônica iniciou-se na China e disseminou-se pela Europa. Alexandre Yersin, discípulo de Pasteur, descobriu o bacilo da peste bubônica em Hong Kong e logo depois, juntamente com Calmette e Roux, desenvolveu uma vacina (imunização ativa) e um soro (imunização passiva) contra a peste. A mesma abordagem está sendo feita com a Covid-19. Vários laboratórios estão desenvolvendo vacinas anti-CoV-2 (https://doi.org/10.1016/j.immuni.2020.03.007). Porém, o tempo entre o desenvolvimento e a aplicação da vacina pode demorar anos.
Não podemos prescindir de estudos em animais para avaliar a eficácia da vacina, pois aplicar uma vacina na população, sem fazer testes experimentais, pode acarretar problemas mais graves do que já temos. Por exemplo, uma vacina usando apenas a proteína S (a glicoproteína da espícula do vírus responsável pela ligação do vírus à célula hospedeira) tem sido desenvolvida, pois o racional desta abordagem é que induzindo anticorpos contra a glicoproteína S, o vírus seria neutralizado. No entanto, quando esta hipótese foi testada em macacos, os macacos em vez de estarem protegidos, desenvolveram uma patologia mais grave. Os autores deste trabalho chamam a atenção que anticorpos podem ter efeito deletério na COVID-19 (insight.jci.org https://doi.org/10.1172/jci.insight.123158). Porém, trabalho recente mostrou que a transfusão de plasma de pacientes convalescentes, que possuem anticorpos neutralizantes, para pacientes com COVID-19 grave, foi eficaz em reverter o quadro clínico em 3-7 dias após a transfusão do plasma (www.pnas.org/cgi/doi/10.1073/pnas.2004168117). Estes resultados promissores são contrários aos descritos nos experimentos com macacos. No entanto, o plasma de convalescentes possui diferentes tipos de anticorpos contra diferentes estruturas do vírus e não só anti-S. Neste sentido, o Prof. Nelson Vaz (UFMG), sugeriu que o plasma de pacientes assintomáticos seja o plasma ideal para se utilizar. É possível produzir vários anticorpos contra diferentes determinantes do vírus em laboratório e avaliar qual a melhor combinação.
 
Considerações finais
A população mais vulnerável é a idosa que representa mais de 80% dos óbitos. Há pelo menos três possibilidades para explicar porque idosos são mais susceptíveis: 1. Idosos expressam mais receptores (ACE2) para o vírus (https://www.medrxiv.org/content/10.1101/2020.03.21.20040261v1); 2. Possuem um sistema imunológico senescente que não lida bem com novas infecções; e 3. Desenvolvem inflamação mais exacerbada. Pelo menos dois achados dos pacientes graves chamam atenção: a lesão pulmonar associada a um intensa inflamação devido a produção de moléculas inflamatórias denominada de tempestade de citocinas produzidas principalmente pelo sistema imune inato e os problemas de coagulação devido a reação inflamatória sistêmica (coagulação intravascular disseminada) ou a produção de anticorpos contra fosfolipídeos (síndrome antifosfolipide). Os problemas de coagulação podem ser tratados com drogas anticoagulantes e em especial a heparina de baixo peso molecular. No caso da inflamação pulmonar intensa cito Lewis Thomas, médico e pensador americano, que chamou a atenção que uma resposta inflamatória exagerada é mais deletéria ao hospedeiro que o próprio microrganismo. Portanto, o abrandamento da resposta inflamatória pulmonar parece ser um caminho e o tratamento com corticosteroides (poderosos agentes anti-inflamatórios) pode trazer benefícios. Também é possível pensar  em tratamentos anti-inflamatórios administrados por via inalatória, uma vez que o órgão afetado é o pulmão. Neste sentido, é possível administrar vários medicamentos por via inalatória com a vantagem de usar menor dosagem que a via sistêmica. Não podemos encarar a COVID-19 como uma guerra e em nome da guerra dar tiros para tudo que é lado, ferindo a nós próprios. Devemos encarar a COVID-19 como ela é: uma infecção viral e a partir daí fazer as projeções de evolução da doença e tomar de forma coordenada, as medidas necessárias de contenção da doença para evitar perdas humanas.

PUBLICADO POR
SBI Comunicação
Colunista Colaborador
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