Impacto da obesidade no sistema imune
17 de março de 2021
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Autora: Tatiani Uceli Maioli, docente associada do Departamento de Nutrição e membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Nutrição e Saúde da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

A obesidade é uma condição clínica caracterizada pelo acúmulo de tecido adiposo. Já é claro na literatura que a obesidade predispõe a doenças crônicas como diabetes tipo 2 e hipertensão. No entanto, outras doenças também podem ser desencadeadas ou agravadas pela obesidade. Dentre elas, destacam-se o câncer, as doenças autoimunes, a asma, além de infecções por protozoários, bactérias e vírus.

O sistema imune sofre diversas alterações em decorrência direta da obesidade e tais alterações podem contribuir para essa suscetibilidade aumentada ao desenvolvimento de doenças crônicas e infecciosas. As principais alterações nas respostas imunes se relacionam com a ativação de mecanismos pró-inflamatórios.

Na obesidade, o tecido adiposo pode se tornar gravemente disfuncional. Os adipócitos sofrem mudanças que vão desde o aumento de seu tamanho ao comprometimento da sua função fisiológica e à sua distribuição atípica no corpo. Ocorrem também modificações na matriz extracelular, na vascularização, nos níveis de estresse oxidativo, no perfil de adipocinas secretadas e no estado inflamatório das células imunes infiltradas nesse tecido.

O aumento da secreção de citocinas produzidas pelos adipócitos, tais como TNF-α, interleucina-1β (IL-1β), IL-6, IL-8, leptina e resistina, com a redução paralela de IL-10 e adiponectina, caracterizam a obesidade como um estado inflamatório de baixa intensidade. Com o acúmulo de tecido adiposo, ocorre também a liberação de ácidos graxos livres, assim como o aumento da concentração plasmática de glicose e de radicais livres na circulação que contribuem para a ativação de vias de sinalização, como as do IKKβ e NF-κB, e das vias dos receptores do tipo Toll (TRL).

Paralelamente, a dieta consumida por indivíduos com obesidade induz a disbiose da microbiota intestinal, aumentando a permeabilidade intestinal e levando ao extravasamento de LPS para circulação e à amplificação da sinalização por receptores do tipo Toll. Essa sinalização estimula a imunidade inata e favorece o ciclo inflamatório.

O tecido adiposo na obesidade acumula células mieloides e linfoides. Macrófagos M1 CD11c+CX3CR1+ presentes nesse local secretam citocinas inflamatórias e óxido nítrico que induzindo a produção de HIF1-alfa, seguido de hipóxia de adipócitos que gera mais uma alça de amplificação dos mecanismos inflamatórios. Esse processo induz ainda o recrutamento de outras células como linfócitos T CD4+, T CD8+ e células NK e a redução proporcional da frequência de células T reguladoras. Esse cenário contribui para a produção de citocinas pró-inflamatórias, a liberação de quimiocinas como a proteína quimiotática de monócitos 1 e 3 (MCP-1 e MCP-3), e cria um ciclo de recrutamento celular contínuo com inflamação constante fomentando o estado inflamatório da obesidade.

As alterações do tecido adiposo ultrapassam a barreira tecidual e atingem outros órgãos, como os órgãos linfoides primários e secundários. Na medula óssea, ocorre diminuição da hematopoiese e, no timo, redução da maturação de linfócitos T com impacto no repertório de linfócitos produzidos, causando uma espécie de oligoclonalidade.

Na mucosa intestinal, ocorre aumento dos linfócitos intraepiteliais e aumento da permeabilidade da barreira epitelial. No baço e linfonodos periféricos, ocorre redução do influxo de células apresentadoras de antígenos e, com isso, prejuízo na ativação de linfócitos T. No pulmão, também ocorre aumento da permeabilidade epitelial e do estresse oxidativo dificultando o controle de infecções.

O aumento da susceptibilidade às infecções em indivíduos com obesidade ficou mais evidente com as epidemias pelo vírus H1N1 e, atualmente, pelo SARS-Cov2. Alguns mecanismos têm sido propostos na tentativa de elucidar o que ocorre. No caso de infecções pulmonares como H1N1, o pulmão mais permeável facilita o influxo de fluido e uma maior distribuição do agente infeccioso, além de aumento do edema e do estresse oxidativo.

A nível celular, ocorre diminuição da proliferação de células efetoras, redução da migração de células apresentadoras de antígenos (células dendríticas) e da ativação dos receptores do tipo Toll em macrófagos. Isso diminui a síntese de interferons do tipo I, necessários para o controle viral.

Uma questão interessante é que, embora a obesidade induza um aumento de macrófagos M1 no tecido adiposo, metabólitos como palmitato, insulina e glicose provocam uma ativação alternativa dessas células em outros órgãos e nos sítios adjacentes aos vasos sanguíneos no tecido adiposo. Esses macrófagos alternativamente ativados passam a expressar o receptor de manose CD206, um marcador típico de macrófagos M2, associados a funções homeostáticas de reparo e de imunorregulação.

Apesar de possuir maior capacidade fagocítica, esses macrófagos expressam baixos níveis da molécula co-estimulatória CD86 sendo, portanto, ineficientes como células apresentadoras de antígenos para linfócitos T e pouco efetivos no controle de patógenos de uma forma geral. Este pode ser um dos fatores envolvidos na maior susceptibilidade às infecções que acompanha a obesidade. Outra célula importante no controle infeccioso é o neutrófilo. Nesse caso, foi demonstrado que neutrófilos de camundongos obesos não estão completamente ativados e exibem um perfil não inflamatório que também não favorece a eliminação de patógenos.

Por outro lado, alguns estudos também mostraram que a obesidade é acompanhada de aumento da diferenciação de células Th17. Assim, somado à diminuição das células T reguladoras e da síntese de TGF-beta e de IL-10, a obesidade dificulta o processo de cicatrização e de resolução da inflamação. Esses fatores favorecem o desenvolvimento de doenças autoimunes e a perda de controle das lesões resultantes de processos infecciosos.

No presente momento, os holofotes estão voltados para a vacinação contra o SARS-CoV2. Dessa forma, é importante lembrar que a obesidade influencia negativamente o sucesso da vacina. A baixa ativação de macrófagos e a falha das células dendríticas em ativar linfócitos T dificultam a ativação de uma resposta específica eficiente. Assim, ocorre deficiência na indução de células T específicas, tanto CD4 quanto CD8, devido à diminuição de repertório dessas células. Também há diminuição da mudança de isotipo de IgM para IgG, com redução da formação de anticorpos neutralizantes. Desse modo, esses fatores comprometem a geração de células de memória efetoras.

Ainda não existe na literatura trabalhos que esclareçam como deve ser o tratamento de pacientes com obesidade em relação às infecções e a outras doenças. No entanto, sabemos que indivíduos com excesso de peso respondem de forma diferente a essas doenças. Portanto, estratégias terapêuticas precisam ser mais direcionadas na clínica. É importante salientar também que os protocolos de vacinação precisam ser avaliados à luz desses dados, pois uma resposta imune reduzida à vacinação em indivíduos com obesidade pode ser especialmente problemática nesse momento não só para o próprio indivíduo, mas também para toda a comunidade.

Referências

 

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* O artigo foi publicado originalmente no e-book "Manifesto Obesidade: Cuidar de Todas as Formas”, uma iniciativa da Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (ABESO) e da Sociedade Brasileira de Endocrinologia e Metabologia (SBEM).

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