Por: Pedro Manoel Mendes de Moraes Vieira*
Vivemos tempos complexos onde a nova pandemia da COVID-19 afetou diretamente nossa forma de viver e também de conviver. Quem não tem saudade das viagens em que ficamos parecendo uma obra de Picasso por tanta mordida de mosquito. Logo vinha alguém dizendo: “isso é porque você tem o sangue doce”. Embora isso seja uma crendice popular ao se tratar de mosquito, não é tão errado quando aplicamos essa frase ao novo coronavírus, SARS-CoV-2 (CoV-2), o agente causador da COVID-19. O CoV-2 tem uma clara predileção para pessoas com “sangue doce”. Pessoas com diabetes, onde temos um aumento na concentração de glicose no sangue, possuem um maior risco em desenvolver a forma grave da COVID-19 e de virem a óbito [1]. A epidemia da obesidade continua inabalável mundialmente e tende a aumentar drasticamente no mundo inteiro, mesmo nos países onde a pobreza e a desnutrição são mais generalizadas. Como a obesidade é o maior fator de risco para desenvolvimento da diabetes tipo II, temos um grande número de pessoas susceptíveis a COVID-19.
Dados de uma coorte de mais de 7000 pacientes mostrou que, de fato, níveis aumentados e não controlados de glicose no sangue aumentam a gravidade e o risco de óbito de pacientes com COVID-19 [2]. Esse estudo apontou que este quadro está associado a níveis aumentados de citocinas pró-inflamatórias circulantes, indicando uma participação chave do sistema imune nesse processo [2]. O nosso grupo mostrou que CoV-2 também infecta e se replica mais em monócitos isolados de pessoas diabéticas/obesas em comparação a pessoas magras [3]. Os monócitos e macrófagos são as células mais abundantes no lavado broncoalveolar de pacientes com a forma grave de COVID-19 [3],[4]. Também, níveis aumentados de açúcar aumentam a capacidade de infecção/replicação do CoV-2 [3]. Essa maior replicação nos monócitos é acompanhada de uma elevada produção de citocinas inflamatórias [3]. Esses dados indicam um efeito causal entre níveis aumentados de glicose, a replicação do CoV-2 e a resposta inflamatória.
O CoV-2 necessita reprogramar o metabolismo celular para sintetizar moléculas essenciais a sua replicação, levando a alterações metabólicas que subsequentemente irão afetar a função celular. Para muitos, o metabolismo celular é visto simplesmente como forma de gerar e armazenar energia e de produzir macromoléculas necessárias para as funções celulares. Entretanto, a descrição das vias metabólicas possibilitou a compreensão de diversas desordens em que a função do sistema imune é imprescindível, como na diabetes, autoimunidades e mais recentemente em vários tipos de infecções, incluindo pelo CoV-2. Um achado essencial que emergiu desse contexto é a área de imunometabolismo que integra as disciplinas historicamente separadas de Metabolismo e Imunologia. Há muito tempo sabe-se que as células efetoras do sistema imune são imprescindíveis tanto para manutenção da homeostasia orgânica como para a resposta contra agentes patogênicos. Logo, o sistema imune interage com vários outros tecidos, como os sistemas nervoso, cardiovascular, respiratório, renal, endócrino, entre outros. Atualmente, as vias metabólicas são consideradas importantes mediadoras destas interações.
Indícios de que o CoV-2 reprograma o metabolismo celular para favorecer sua replicação surgiu do estudo proteômico da linhagem de epitélio intestinal infectada pelo CoV-2 [5]. Foram observadas robustas alterações nas vias relacionadas ao metabolismo de carbono e a inibição do fluxo de glicose bloqueou a replicação viral [5]. Os mecanismos pelo qual o CoV-2 reprograma o metabolismo de células-alvo ainda não é bem compreendido, mas parece envolver sensores do metabolismo celular.
Dentro desse contexto, fatores de transcrição envolvidos inicialmente com a regulação metabólica, como o mTOR (do inglês, mammalian target of rapamycin) e o HIF-1α (do inglês, hypoxic induced factor 1 α) desempenham um papel fundamental integrando sinais externos oriundos do microambiente a sinais metabólicos internos para regular a função e o crescimento celular [6]. O mTOR é uma quinase intracelular que “sente” o estado nutricional/metabólico da célula, o qual integra sinais de nutrientes intracelulares e extracelulares, assim como sinais de fatores de crescimento presentes no microambiente para definir a taxa metabólica global da célula. Dessa forma, a via do mTOR pode ser o elo entre a sinalização nutricional sistêmica om a sinalização intracelular do estado nutricional da célula e do microambiente. Já o HIF-1α é um fator de transcrição induzido em condições de hipóxia e também por estímulos inflamatórios [7]. HIF-1α é necessário para induzir glicólise em macrófagos por induzir a transcrição genes relacionados à indução da via glicolítica e para induzir a polarização de macrófagos para um perfil inflamatório [7]. Nesse contexto, foi descrito alterações substanciais da sinalização de Akt/mTOR/HIF-1 em resposta à infecção por SARS-CoV-2 [8]. Essa descrição indicou um potencial papel desses sensores metabólicos durante a infecção pelo CoV-2, mas sem que fosse determinado o mecanismo envolvido. Essas vias são passíveis de serem moduladas e isso as tornam boas candidatas para o desenvolvimento de potenciais terapias para o tratamento de pacientes com COVID-19.
Para ajudar a entender por que o diabetes não controlado é um fator de risco para COVID-19 grave, Codo et al. examinou a relação entre a glicólise e a replicação do SARS-CoV-2 em monócitos [3]. Níveis elevados de glicólise levaram a uma maior replicação de CoV-2 e expressão de citocinas pró-inflamatórias e interferons tipo I/III nessas células [3]. O pré-tratamento de monócitos do sangue periférico humano com inibidores de vias metabólicas mostrou que o CoV-2 depende de um fluxo aumentado da via glicolítica. O fluxo aumentado dessa via foi, por sua vez, diretamente regulado pela estabilização de HIF1α induzida pelas espécies reativas mitocondriais de oxigênio (mtROS) [3]. A reprogramação metabólica dos monócitos induzida por HIF1α possibilitou a transição de um metabolismo oxidativo para a glicólise aeróbia em monócitos infectados com CoV-2, o que facilitou a replicação viral e a produção de mediadores solúveis, os quais podem contribuir para o dano causado pela infecção.
As células T são consideradas as células que vão orquestrar a resposta antiviral, seja por sua capacidade em eliminar células infectadas ou estimular a troca de classe e produção de anticorpos por células B. Entretanto, essas células são guiadas pela imunidade inata e disfunções ou alterações na imunidade inata terão sérias consequências para a imunidade adaptativa subsequente. Ao analisar a resposta de células T quando cultivadas em meio condicionado de monócitos infectados com CoV-2 observou-se que fatores secretados pelos monócitos infectados causaram uma a disfunção na resposta de células T, dentre elas uma menor capacidade proliferativa, reduzida secreção de citocinas inflamatórias e maior expressão do marcador de exaustão PD-1. Quando os monócitos foram pré-tratados com inibidores da glicólise, de mtROS ou de HIF1α, a resposta das células T foi normalizada [3].
A resposta imune ao SARS-CoV-2 é altamente complexa e envolve alterações tanto na nossa imunidade inata como adaptativa, além de diversas adaptações metabólicas que certamente são moduladas ao longo da infecção. Além disso, ainda conhecemos muito pouco sobre como a resposta imune adaptativa irá, por sua vez, modular a imunidade inata e quais as consequências disso para a evolução clínica da doença.
Referências
- Richardson, S., et al., Presenting Characteristics, Comorbidities, and Outcomes Among 5700 Patients Hospitalized With COVID-19 in the New York City Area. JAMA, 2020.
- Zhu, L., et al., Association of Blood Glucose Control and Outcomes in Patients with COVID-19 and Pre-existing Type 2 Diabetes. Cell Metab, 2020. 31(6): p. 1068-1077 e3.
- Codo, A.C., et al., Elevated Glucose Levels Favor SARS-CoV-2 Infection and Monocyte Response through a HIF-1alpha/Glycolysis-Dependent Axis. Cell Metab, 2020.
- Bost, P., et al., Host-Viral Infection Maps Reveal Signatures of Severe COVID-19 Patients. Cell, 2020. 181(7): p. 1475-1488 e12.
- Bojkova, D., et al., Proteomics of SARS-CoV-2-infected host cells reveals therapy targets. Nature, 2020. 583(7816): p. 469-472.
- Maya-Monteiro, C.M. and P.T. Bozza, Leptin and mTOR: partners in metabolism and inflammation. Cell Cycle, 2008. 7(12): p. 1713-7.
- Tannahill, G.M., et al., Succinate is an inflammatory signal that induces IL-1beta through HIF-1alpha. Nature, 2013. 496(7444): p. 238-42.
- Appelberg, S., et al., Dysregulation in Akt/mTOR/HIF-1 signaling identified by proteo-transcriptomics of SARS-CoV-2 infected cells. Emerg Microbes Infect, 2020. 9(1): p. 1748-1760.
*Pedro Manoel Mendes de Moraes Vieira é professor livre docente de Imunologia no Departamento de Genética, Microbiologia e Imunologia do Instituto de Biologia da UNICAMP e membro do Comitê Científico da SBI.
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