Obesidade e Covid-19, uma relação perigosa
07 de agosto de 2020
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Por: Tatiani Uceli Maioli*

Não é novidade que o Sars-Cov-2 já é um problema mundial. Em especial no Brasil, que já o segundo país com maior número de casos no mundo (dados em 23 de julho). Dentre as questões que a ciência tenda entender é porque alguns indivíduos ficam mais graves que outros, mesmo aqueles menores de 60 anos de idade.
 
Muito antes do surgimento da pandemia, a obesidade já era uma preocupação no Brasil. De acordo com dados do VIGITEL 2019 (Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico) 55,4% população brasileira apresenta excesso de peso, e 20,3% está obesa, sendo que a obesidade é fator de risco para o diabetes tipo II e para hipertensão arterial. Em maio, quando o Brasil ainda apresentava números razoáveis de Covid-19, das 1.124 mortes registradas até aquela data, 944 tinham sido analisadas e catalogadas pelo Ministério da Saúde. Dessas, 75% eram de pessoas com mais de 65 anos. Dentre elas 43 eram casos de pessoas obesas que morreram em decorrência da Covid-19, sendo que 24 pacientes tinham menos de 60 anos. De acordo com Organização Mundial da Saúde (OMS), pacientes com condições crônicas pré-existentes, como diabetes e hipertensão, apresentaram versões mais graves da doença. Nesses casos a infecção evoluiu rapidamente para a síndrome do desconforto respiratório agudo e insuficiência respiratória. A alta letalidade em pacientes com uma ou mais enfermidade crônica não transmissível foi relatada em diversos estudos independentes e multiterritoriais. Um estudo realizado com 1591 pacientes da região da Lombardia na Itália, observou que mais de 65% dos indivíduos que tiveram Covid-19 apresentavam pelo menos uma comorbidade associada. No caso, a comorbidade mais comum foi a hipertensão, seguida por doenças cardiovasculares, hipercolesterolemia e diabetes1, todas relacionadas à obesidade. Nos Estados Unidos, adultos jovens com obesidade representavam quase 50% do total de internações até o mês de abril2.
 
A evolução da Covid-19 pode ser dividida em 3 fases: período de incubação, período sintomático não grave e período sintomático respiratório grave com alta carga viral. Somente 15% dos infectados apresentarão esta última fase. Os casos mais severos ocorrem durante a fase de tentativa de eliminação do vírus na qual citocinas inflamatórias como IL-2, IL-6, IL-7, MIP1 e TNF-alfa são produzidas de maneira excessiva por monócitos, neutrófilos e linfócitos T em um fenômeno denominado “tempestade de citocinas”3. O interessante é que a carga inflamatória sistêmica parece ser fundamental no prognóstico, e como descrito anteriormente, um paciente obeso já enfrenta a infecção viral com alterações imunológicas precedentes de grande importância que podem de fato alterar a resposta imune. Já foi descrito também em modelos animais que a obesidade predispõe os linfócitos TCD8+ à exaustão celular em diferentes órgãos, caracterizado principalmente pela alta expressão de PD-14,5. No caso da Covid-19, parece que pacientes em Unidades de terapia intensiva (UTIs) apresentam exaustão celular de linfócitos T mais precoce do que pacientes com sintomas brandos6. Outra questão do Sars-CoV-2 é a leucopenia que acomete 80% dos pacientes, esse fato pode colaborar com a replicação viral. O estado pró-inflamatório da obesidade contribui para ativação de células T efetoras, mas também para senescência prematura dessas células, caracterizada por baixa resposta efetiva e exaustão celular.
 
O excesso de peso relacionado a obesidade aumenta a adiposidade visceral que está associada com alterações metabólicas, desregulação da atividade de insulina, altos níveis de frutose circulante, hiperlipidemia e hipertensão. Dessa forma existe uma inflamação de baixo grau com elevado teor de citocinas pró-inflamatórias. No caso de pacientes com Covid-19 existe uma elevação de IL-6 e ferritina associadas com prognóstico ruim para a infecção, que no caso de pacientes obesos é ainda maior. Em pacientes com a forma mais grave da doença ocorre a chamada “tempestade de citocinas”, com excessiva secreção de citocinas e quimiocinas levando ao dano do epitélio pulmonar.
 
A hiperglicemia relacionada ao aumento da resistência à insulina e ao excesso de peso promovem principalmente a expansão do tecido adiposo visceral, disfunção no epitélio do intestino e disbiose. Isso causa aumento da permeabilidade intestinal que se traduz em extravasamento de bactérias, lipopolissacarideo (LPS) e ácidos graxos livres (FFAs) para o sangue. Essas substâncias se tornam estímulos para proliferação, migração e ativação de células do sistema imune com características inflamatórias7. Além disso, os adipócitos também produzem citocinas e adipocinas que recrutam células, criando um ambiente de inflamação primeiramente no tecido adiposo que posteriormente se expande sistemicamente e compromete o funcionamento adequado do sistema imune8,9. Apesar do aumento da inflamação, essas alterações têm impactos diretos nas células da imunidade inata e adquirida o que compromete a eliminação de patógenos. Outra questão relevante em infecções respiratórias é que obesos tem a capacidade ventilatórias pulmonar prejudicada pelo deslocamento do diafragma e por acúmulo de tecido adiposo no mediastino, o que contribuem para a dificuldade respiratória.
 
Durante o surto de H1N1 também foi verificado que indivíduos obesos eram mais susceptíveis ao vírus. Assim, vários estudos foram conduzidos para tentar esclarecer essa questão. Rebekah Honce e Stacey Schultz-Cherry descrevem numa revisão publicada na Frontiers in Immunology em 201910 os fatores que levam a maior susceptibilidade de obesos ao vírus influenza. Existe maior permeabilidade do epitélio pulmonar em obesos, isso facilita a propagação dos vírus para outros compartimentos corporais. Há também um descompasso na produção de citocinas. Devido à inflamação no tecido adiposo, há demora na migração de células para o pulmão após a infecção, bem como demora na secreção de citocinas no local. Ocorre aumento na expressão de SOCS3 que inibe a liberação de IFN do tipo I. No caso da infecção grave por SARS-Cov-2 existe diminuição da secreção de IFN do tipo I e III, associado a morte prematura de leucócitos ativados. A leptina que também é produzida em excesso na obesidade, aumenta a expressão de SOCS3 em células Treg o que provoca um mau funcionamento das mesmas e consequentemente descontrole da inflamação11. Percebe-se então que a cinética das citocinas inflamatórias e anti-inflamatórias está comprometida em obesos, dificultando o processo de resolução da infeção.
 
Um ponto que tem merecido atenção na resposta imune em indivíduos obesos são os macrófagos. Durante a obesidade existe uma polarização dessas células para um perfil pró-inflamatório M1 em especial no tecido adiposo. No entanto, em situações de infecção pulmonar ocorre um retardo na migração dessas células para o local da infecção e diminuição no número de macrófagos alveolares, o que dificulta a eliminação dos patógenos. Por outro lado, outras teorias têm sido propostas que podem explicar a maior susceptibilidade de obesos a infecção, como a teoria dos macrófagos metabólicos, esses possuem baixa expressão de CD86, e alta expressão de CD206, apresentam um perfil diferenciado e não conseguem eliminar os patógenos, apesar de continuarem produzindo citocinas inflamatórias12,13.
 
Recentemente pesquisadores da UNICAMP e da Universidade do Texas relataram que o Sars-Cov-2 é capaz de infectar os adipócitos14, essas células possuem a enzima ACE2, por onde o vírus entra. Em indivíduos obesos com diabetes tipo 2, ocorre aumento da expressão de ACE2 nos adipócitos. Dessa forma o tecido adiposo passa a ser um reservatório do vírus. Visto que obesos possuem expansão desse tecido, é possível que a carga viral nesses indivíduos seja maior, o que compromete ainda mais a sua eliminação. Além disso, o adipócito pode ser tornar um “esconderijo” para o vírus, já que ali não seria capturado pelas células fagocíticas.
Embora seja reconhecido que a obesidade e as comorbidades associadas como hipertensão e diabetes estão relacionadas ao curso mais grave da Covid-19, o mecanismo exato ainda não está elucidado. A obesidade prejudica várias vias da resposta imune, desde a fagocitose dos patógenos, até a resolução da inflamação. A mensuração das características antropométricas, como peso e altura de todos os indivíduos doentes e dos parâmetros metabólicos seria importante para melhor estimar o risco de complicações em pacientes com Covid-19.
 
Referências:
 

  1.   Grasselli G, Zangrillo A, Zanella A, et al. Baseline Characteristics and Outcomes of 1591 Patients Infected With SARS-CoV-2 Admitted to ICUs of the Lombardy Region, Italy. JAMA. April 2020. doi:10.1001/jama.2020.5394
  2.   Simonnet A, Chetboun M, Poissy J, et al. High prevalence of obesity in severe acute respiratory syndrome coronavirus-2 (SARS-CoV-2) requiring invasive mechanical ventilation. Obesity (Silver Spring). 2020:0-1. doi:10.1002/oby.22831
  3.   Huang C, Wang Y, Li X, et al. Clinical features of patients infected with 2019 novel coronavirus in Wuhan, China. Lancet. 2020;395(10223):497-506. doi:10.1016/S0140-6736(20)30183-5
  4.   Shirakawa K, Yan X, Shinmura K, et al. Obesity accelerates T cell senescence in murine visceral adipose tissue. J Clin Invest. 2016;126(12):4626-4639. doi:10.1172/JCI88606
  5.   Kado T, Nawaz A, Takikawa A, Usui I, Tobe K. Linkage of CD8+ T cell exhaustion with high-fat diet-induced tumourigenesis. Sci Rep. 2019;9(1):1-8. doi:10.1038/s41598-019-48678-0
  6.   Moon C. Fighting COVID-19 exhausts T cells. Nat Rev Immunol. April 2020:1-1. doi:10.1038/s41577-020-0304-7
  7.   Thaiss CA, Levy M, Grosheva I, et al. Hyperglycemia Drives Intestinal Barrier Dysfunction and Risk for Enteric Infection. Vol 1383.; 2018:1376-1383. doi:10.1126/science.aar3318
  8.   Kanneganti T-D, Dixit VD. Immunological complications of obesity. Nat Immunol. 2012;13(8):707-712. doi:10.1038/ni.2343
  9.   Scarpellini E, Tack J. Obesity and metabolic syndrome: an inflammatory condition. Dig Dis. 2012;30(2):148-153. doi:10.1159/000336664
  10. Honce R, Schultz-Cherry S. Impact of obesity on influenza A virus pathogenesis, immune response, and evolution. Front Immunol. 2019;10(MAY):1071. doi:10.3389/fimmu.2019.01071
  11. Rebello CJ, Kirwan JP, Greenway FL. Obesity, the most common comorbidity in SARS-CoV-2: is leptin the link? Int J Obes. 2020. doi:10.1038/s41366-020-0640-5
  12. Kratz M, Coats BR, Hisert KB, et al. Metabolic dysfunction drives a mechanistically distinct pro-inflammatory phenotype in adipose tissue macrophages. Cell Metab. 2014;20(4):614-625. doi:10.1016/j.cmet.2014.08.010
  13. Silva HM, Báfica A, Rodrigues-Luiz GF, et al. Vasculature-associated fat macrophages readily adapt to inflammatory and metabolic challenges. J Exp Med. March 2019:jem.20181049. doi:10.1084/jem.20181049
  14. Kruglikov IL, Scherer PE. The Role of Adipocytes and Adipocyte-Like Cells in the Severity of COVID-19 Infections. Obesity. 2020;28(7):1187-1190. doi:10.1002/oby.22856

 
https://saudebrasil.saude.gov.br/ter-peso-saudavel/por-que-a-obesidade-e-um-fator-de-risco-para-pessoas-com-coronavirus
https://covid.saude.gov.br/
https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875
http://agencia.fapesp.br/estudo-sugere-que-tecido-adiposo-pode-servir-de-reservatorio-para-o-novo-coronavirus/33612/
 
 
*Tatiani Uceli Maioli é docente adjunto IV do Departamento de Nutrição e membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Nutrição e Saúde da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
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SBI Comunicação
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