Autor: Dinler Amaral Antunes é professor assistente de Biologia Computacional no Departamento de Biologia e Bioquímica da Universidade de Houston, membro do Centro para Receptores Nucleares e Sinalização Celular (CNRCS), e da Sociedade Internacional de Biologia Computacional (ISCB).
A pandemia mudou completamente nossas rotinas e introduziu (ou resgatou) novos hábitos. Eu, por exemplo, conseguia encontrar tempo na minha rotina para escutar podcasts, mas vinha tendo dificuldade de encontrar um tempo para a leitura de livros. Durante a pandemia eu finalmente dei uma chance aos "audio-livros", e consegui fazer progresso na lista de títulos de interesse que eu estava acumulando. Por exemplo, eu finalmente "li" a coleção de 3 livros do Yuval Noah Harari: "Sapiens", "Homo Deus" e "21 lições para o século 21". Como o Sapiens foi um presente e eu já havia começado a leitura com o livro físico, eu continuei a leitura dos demais na ordem acima (ordem de publicação). No entanto, repito agora a recomendação que me havia sido feita pelo amigo Prof. Eduardo Chiela (UFRGS), de que é melhor começar pelo último livro. Todos os livros são fantásticos: o Sapiens fala do nosso passado, o Homo Deus do nosso futuro, e o último livro fala do presente. Os dois primeiros demandam um pouco mais de investimento intelectual, de interesse por história, e de curiosidade sobre tecnologias que irão moldar nosso futuro. O terceiro livro, apesar de também abordar estes pontos, é muito mais objetivo e pragmático. Ao ler em 2020 este livro que foi publicado em 2018, eu já esperava escutar mais sobre os desafios sociais e econômicos que viveremos em consequência do desenvolvimento da inteligência artificial e do agravamento das mudanças climáticas. O que eu não esperava era ser surpreendido por alguns trechos que nos ajudam a entender como estamos atacando de forma equivocada os problemas relativos a desinformação e ao negacionismo da ciência.
Obviamente estes problemas não são novos, e muitos outros autores abordaram estes temas muito antes. Mas Yuval Harari tem uma forma única de apresentar os problemas, embasado tanto em um amplo conhecimento histórico como em um entendimento atualizado das tecnologias que estão revolucionando nossas vidas e nossa sociedade. Creio que a leitura de "21 lições para o século 21" seja essencial para todos os seres humanos do planeta. Em especial, penso que alguns trechos deste livro possam servir de incentivo para repensarmos nossas abordagens de ensino e de divulgação científica. Eu não tenho as respostas para os problemas abordados. Tampouco Harari as tem. Mas o fato é que a desinformação e o negacionismo foram um dos tantos problemas evidenciados e exacerbados pela pandemia de COVID-19, e não acho absurdo dizer que nossa sobrevivência depende de mudanças urgentes para atacar estes problemas. Para instigar esta reflexão, eu transcrevo abaixo dois trechos dos capítulos 15 e 19 do livro "21 lições para o século 21", fazendo uma adaptação livre da linguagem utilizada pelo autor.
Um dos pontos chave é que o mundo está ficando cada vez mais complexo, e as pessoas não têm nem sequer a capacidade de avaliar o quanto são ignorantes sobre o que está acontecendo no mundo. Assim, as opiniões e ações das pessoas acaba sendo uma consequência direta deste "descompasso" entre a realidade, e a sua percepção da realidade. Harari apresenta o exemplo de pessoas que não tem nenhuma base em tópicos como climatologia e biologia molecular, mas que não percebem nenhum problema em defender ou criticar políticas públicas sobre efeitos climáticos ou alimentos geneticamente modificados. Um outro exemplo apresentado se refere a pessoas que defendem pontos de vista extremos sobre o Iraque, a Palestina ou a Ucrânia, sem nem saber localizar estes países no mapa. Conforme evidenciado em discussões atuais sobre vacinas e tratamentos alternativos ou precoces para a COVID-19, as pessoas nem sequer percebem o "tamanho" de sua ignorância no assunto. Harari explica que isso é em parte causado por seu isolamento em "bolhas" de pessoas que pensam igual, e de fontes de notícias (ou fake news) que apenas reforçam suas posições, sem espaço para críticas ou contradições.
Neste contexto, Harari explica, é improvável que apenas fornecer mais informação, mesmo que de melhor qualidade, seja suficiente para melhorar a situação. Ele diz que os cientistas têm a expectativa de esclarecer as visões equivocadas através do melhor ensino de ciências. E que pensadores eruditos esperam convencer as pessoas em tópicos como financiamento público de sistemas de saúde, e de enfrentamento `a mudanças climáticas, através da apresentação de fatos, dados estatísticos e pareceres de especialistas. Harari então explica que tais expectativas estão baseadas em uma visão equivocada sobre como os humanos pensam; a maior parte das nossas visões são moldadas por nossa experiência coletiva. Ou seja, nossas visões são determinadas pelas opiniões do nosso grupo, ao invés da nossa racionalidade individual. E nós nos mantemos fiéis a estas visões por lealdade ao nosso grupo. Bombardear pessoas com fatos e expor sua ignorância individual tem poucas chances de ter efeito educacional, e grandes chances de ter efeito contrário ao desejado (e existe evidência disso em estudos recentes). A maioria das pessoas não gosta de escutar muitos fatos, e certamente ninguem gosta de se sentir estúpido. E o poder do pensamento de grupo é tão forte que ele se sobrepõe mesmo quando a ideologia do grupo defende algo completamente arbitrário ou sabidamente equivocado, sendo o movimento terra-planista apenas um dentre tantos exemplos deste fenômeno.
O outro ponto crítico abordado por Harari diz respeito ao nosso sistema educacional. Generalizando o sistema educacional do ocidente, podemos dizer que professores ainda se focam sobretudo em fornecer dados aos alunos, e em ensinar habilidades técnicas específicas, como resolver equações diferenciais, escrever código em C++, ou aprender a falar em Mandarin. Sobre este ponto me parece evidente que é mais fácil avaliar o progresso de um aluno com base na sua capacidade de memorizar fatos, ou de reproduzir uma habilidade técnica mensurável, do que avaliar seu progresso na compreensão dos problemas do mundo. Isso também me faz pensar que a melhora do nosso sistema de ensino passa por uma maior valorização e capacitação dos professores, e provavelmente por uma menor ênfase em métricas objetivas sobre o progresso dos alunos. Obviamente, nada disso é fácil ou simples. E cada possível solução gera um novo problema. Por exemplo, Harari menciona que no aspecto de compreensão dos dados os professores muitas vezes tentam dar liberdade aos estudantes para descobrirem por conta própria, e criarem sua própria visão de mundo. O que me parece completamente razoável e positivo. Por outro lado, Harari diz que esta abordagem está parcialmente baseada na impressão de que mesmo se esta geração falhar em converter estes dados em uma história coerente e com significado, haverá tempo suficiente no futuro para que uma melhor síntese do conhecimento da humanidade seja produzida. O problema, segundo o autor, é que agora estamos ficando sem tempo. As decisões que tomarmos nas próximas décadas irão moldar o futuro da própria vida na Terra, e nós vamos tomar tais decisões baseados unicamente na nossa visão de mundo atual. Se a geração atual não tem uma compreensão adequada do universo, o futuro da vida pode ser decidido aleatoriamente.
Mas qual é a alternativa? Como saber o que precisamos ensinar para melhor preparar as próximas gerações de humanos? Simplesmente apresentar dados não será mais viável, pois estamos produzindo dados como nunca antes na nossa história. Além disso, como não podemos prever a sociedade e o mercado de trabalho do futuro, nós não temos como saber quais habilidades específicas serão mais importantes. Harari ilustra que talvez todo o esforço em aprender C++ e Mandarin se demonstre irrelevante em 2050, quando métodos de inteligência artificial se tornem melhores programadores que humanos, e que aplicativos de tradução permitam conversar em qualquer língua desejada. Salientando a visão de outros autores contemporâneos, Harari menciona que uma alternativa mais promissora seria o enfoque no pensamento crítico, na comunicação, na colaboração e na criatividade. Generalizando estes pontos, o autor defende que as escolas deveriam enfatizar habilidades mais gerais de como viver bem. Talvez as habilidades mais importantes sejam relativas a capacidade de se adaptar a mudança, de constantemente aprender coisas novas, e de manter sua estabilidade mental durante circunstâncias não familiares. Em vários aspectos, o ano de 2020 nos deu uma demonstração prática da importância destas habilidades. Para concluir, Harari ilustra que para se viver bem 2050 não será suficiente inventar produtos inovadores, ou ter ideias criativas, mas que cada indivíduo deverá ser capaz de se reinventar, múltiplas vezes.
Como falei no início, estes problemas não são novos, e o "21 lições para o século 21" foi escrito antes da pandemia de COVID-19. Mas a pandemia escancarou desigualdades e problemas sociais, e também evidenciou o senso de urgência com que temos que rever nosso sistema educacional e nossas estratégias de divulgação científica. Estes são tópicos extremamente complexos e vai ser muito difícil construir consensos. Mas o tempo está passando, e o futuro virará presente, independente de estarmos prontos ou não.
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