200315 — Portadores sãos e a covid-19
Nelson Vaz
Esta horrível surpresa da pandemia com que nos defrontamos agora repercute fortemente na imunologia. Por um lado, nos alerta para uma fragilidade da qual nossa hubris, nossa presunção de poder, tem nos afastado. Nesta fragilidade se incluem as enormes dificuldades de obtenção de uma nova vacina para uso humano. Por outro lado, coloca em evidência um problema sobre o qual a imunologia se deteve muito pouco em sua história e agora se agiganta: os “portadores sãos” — os transportadores sadios de agentes patogênicos (Chisholm et al., 2018).
Ainda seguimos o entendimento de Pasteur, em sua teoria dos germes, segundo a qual as doenças infecciosas dependem do contágio com “germes” específicos. A imunologia tem pouco a dizer sobre as diferenças na suscetibilidade individual as infecções, que em um extremo gera “portadores sãos” e no outro gera organismos muito suscetíveis que sofrem sintomas graves e morrem.
Claude Bernard, o famoso fisiologista francês contemporâneo de Pasteur e criador da medicina experimental e da ideia de um “meio interno” robustamente constante onde vivem nossas células, era um opositor da teoria dos germes. Argumentava que se o “meio interno” se mantivesse “em harmonia”, o contágio não levaria ao adoecer. Esta ideia não explica as diferenças individuais mas nos alerta para que, evidentemente, elas dependem do organismo como um todo e de sua autonomia, de sua capacidade de se manter integrado enquanto varia de estrutura celular e molecular.
Além de nos alertar sobre a patogênese pelo contágio com germes específicos, Pasteur também mostrou que é possível “imunizar” contra doenças infecciosas pelo uso de “vacinas”, preparados contendo formas enfraquecidas (atenuadas) dos germes antes patogênicos. As vacinas pouparam à humanidade e aos animais domesticados uma enorme quota de morte e sofrimento e, absolutamente, não trato aqui de argumentos contrários ao seu uso. Mas aponto nossa fragilidade em desenvolver um novo tipo de vacina, principalmente em uma emergência como a que vivemos na presente pandemia.
Pasteur não entendia como funcionam as vacinas e não conhecia os anticorpos. Os primeiros anticorpos, as antitoxinas contra a difteria e o tétano, foram caracterizados uma dúzia de anos após a teoria dos germes, por Behring e Kitasato. Isto possibilitou o tratamento de crianças com difteria pelo uso de soros animais contendo antitoxinas — a soroterapia, o segundo exemplo mais notável de tradução de achados de laboratório para a clínica médica. Na mesma época, Ehrlich caracterizava a terceira ideia mais importante da imunologia: a imensa versatilidade da produção de anticorpos, que exclui reações ao próprio corpo (o horror autotoxicus).
Estas três ideias — vacinas, anticorpos e o que hoje se chama auto-tolerância — formam até hoje o esqueleto conceitual da imunologia. Neste esqueleto não cabe o “meio interno” de Claude Bernard. O tripé de conceitos em que a imunologia se apóia tem a ver com mudanças do corpo, mas o “meio interno” se refere à conservação — ou melhor: a aquilo que se conserva naquilo que varia. A mudança a que o “meio interno” se refere é a dinâmica do próprio organismo em seu viver. O organismo muda continuamente, mas não obedece às mudanças do meio em que vive — como sugere o termo “adaptação”—, tem suas próprias regras de mudança. Este é o ponto em que nosso conhecimento, como imunologistas, é ralo, insuficiente.
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A presença de uma grande porcentagem de “portadores sãos” torna quase incontrolável a epidemiologia de uma doença. Há dados surpreendentes que agora devemos considerar com mais atenção; por exemplo, o “portadores sãos” do vírus Ebola variam entre 27 e inimagináveis 71% (Chisholm et al., 2018). Algo assim está provavelmente envolvido nos processos que gradualmente transformam doenças epidêmicas em endêmicas, como ocorreu através da história da humanidade. Uma ideia escandalosamente importante está por despontar: as doenças infecciosas agudas, responsáveis pelas epidemias, são antropogênicas, ou seja, sua origem e disseminação depende direta ou indiretamente de ações humanas.
Plantas e animais em seu estado silvestre, longe de intervenções humanas, não sucumbem a doenças infecciosas agudas. O mesmo se aplica aos seres humanos que vivem em comunidades pequenas e nômades, a forma vida humana humana maismais comum desde a origem do Homo sapiens há 200 mil anos, exceto no quarto de um por cento que constitui sua história mais recente. Ou seja, estas doenças não são “acidentes de percurso” que afligem todos os seres vivos: derivam de opções na história humana. Na impossibilidade de voltarmos à vida de caçadores-colhedores do neolítico, cabe-nos agora contornar ameaças que nós mesmos criamos.
O poder tecnológico da imunologia é imenso. “Humanizar” monoclonais murinos, ou fabricar as moléculas híbridas usadas para curar uma forma de câncer, são façanhas assombrosamente complexas. Por outro lado, metade dos imunologistas estuda como o corpo reage a materiais estranhos, enquanto a outra metade estuda como o corpo regula estas respostas imunes e evita reagir a si próprio. Mas o corpo não faz nem uma coisa nem outra. O que o corpo faz? O corpo faz e mantém a si mesmo; e conserva o seu “meio interno” robustamente inalterado.
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Chisholm, R. H., Campbell, P. T., Wu, Y., Tong, S. Y. C., McVernon, J., & Geard, N. (2018). Implications of asymptomatic carriers for infectious disease transmission and control. R Soc Open Sci, 5(2), 172341. doi:10.1098/rsos.172341
Noble, D. (2008). Claude Bernard, the first systems biologist, and the future of physiology. Exp Physiol, 93(1), 16-26. doi:DOI: 10.1113/expphysiol.2007.038695
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