Cesse tudo
25 de março de 2020
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200323 — Cesse tudo 

Nelson Vaz

"Cesse tudo o que a Musa antiga canta,

Que outro valor mais alto se alevanta.”

Luís Vaz de Camões

Os Lusíadas, Canto I, estrofe 3

 

Contingências. Ou há um trajeto inevitável? Na filosofia da ciência há um debate pouco conhecido entre o contingencialismo e o inevitabilismo. Em seu Prefácio de um livro que editou sobre o tema, Lena Soler (2015) pergunta se poderíamos ter “outra ciência”, se o curso da história poderia ter outro de tal maneira que teríamos ideias alternativa à ideia de de átomos, de genes, de como é o universo; ou, se na prática de qualquer coisa chamada Física, chegaríamos às equações de Maxwell. Fosse outra a nossa história, poderíamos ter uma imunologia sem vacinas, sem anticorpos, sem a ideia de tolerância imunológica? Claro, esta é uma versão do debate sobre a natureza de uma realidade objetiva, independente de nossas observações, a realidade que muitas vezes é usada como um argumento para nos obrigar a obedecer a quem, supostamente, tem ou teve acesso privilegiado a esta realidade (Maturana, 1997).

A pandemia mudou o rumo do que posso lhes contar, coisas de muito maior importância se tornaram urgentes. Nós vamos — digo, nós, no sentido mais amplo —mudar muito com esta infeliz experiência de viver esta pandemia. Todos já entendemos que as ameaças não são apenas a infecção: as consequências sociais e políticas podem ser igualmente danosas. No século XV, quando os conquistadores europeus chegaram às Américas, foi desencadeado o episódio mais trágico de toda a história da humanidade, com a destruição de mais de 95% das populações indígenas em cerca de 10 anos. Quando as doenças infecciosas matavam 20-30% das pessoas, a desagregação social subsequente trazia a tragédia para os sobreviventes (Crosby, 2003). No Brasil, não foi diferente (Lopes, 2017). É bom assistir Ailton Krenak no Netflix — Guerras do Brasil— 1º capítulo Guerra de Conquista porque a guerra contra nossos indígenas ainda não acabou.

Por falar em contingências, sabemos pouco do que determina o início e o término das eras glaciais, exceto pelos ciclos Milankovich que descrevem alterações já registradas do movimento do planeta. A última era glacial terminou há 20 mil anos atrás e até então, o Homo sapiens era uma de várias linhagens de primatas caçadores-colhedores a andar no planeta. Foi apenas em virtude deste aquecimento, que já dura por um período ineditamente longo, que pudemos parar e inventar a pecuária e a agricultura. Marcia Bjornerud diz que um pouco de Geologia pode nos tronar mais humildes, humildes, e, em um artigo recente, contesta aquela ideia de comprimir a história da vida em um ano e dizer que o Homo sapiens surge no último segundo do ano. Ela diz:

“ … (L)ivros didáticos geológicos invariavelmente assinalam (quase com alegria) que se a história de 4,5 bilhões de anos da Terra fosse comprimida em um dia de 24 horas, toda a história humana se passaria na última fração de segundo antes da meia-noite. Mas essa é uma maneira errada e até irresponsável de entender nosso lugar no tempo. Por um lado, sugere um grau de insignificância e falta de poder que não apenas é psicologicamente alienante mas também nos permite ignorar a magnitude de nossos efeitos no planeta naquele quarto de segundo. E nega nossas raízes profundas e o envolvimento permanente com a história da Terra; nosso clã específico pode não ter aparecido até pouco antes do relógio chegar às 12:00, mas nossa extensa família de organismos vivos existe desde pelo menos as seis horas da manhã. Finalmente, a analogia implica, apocalíptica, que não existe um futuro - o que acontece depois da meia-noite?”

Como dizia Gregory Bateson: “A humildade é um item de sensatez em uma agenda científica.”

Daniel Carrol, um especialista em vírus que previu a atual pandemia, atribui o que se passa à superpopulação humana e a nossa invasão de todos os nichos ecológicos. Em certo ponto ele diz algo  muito impressionante: “A humanidade levou 400.000 anos para chegar a uma população de um bilhão e depois levou apenas cem anos para chegar a sete bilhões.” O jargão soa de mau gosto, mas, decididamente, a humanidade “viralizou”.

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Bjornerud, M. (2020) Como a geologia pode relaxar sua mente. Confie em que vivemos em um planeta muito antigo e durável. Nautilus 13 de fevereiro.

Crosby, A. W., Jr., & McNeill, J. R. (2003). The Columbian Exchange: Biological and Cultural Consequences of 1492, (Vol. 30th Anniversary Edition). New York: Dover Books.

Lopes, R. J. (2017). 1499: o Brasil antes de Cabral.

São Paulo: Casa dos Livros Editora LTDA”.

Maturana, H. (1997) La objetividad: un argumento para obligar.

Santiago, Dolmen Ensayo.

Soler, L. (2015) Introduction. In Soler, L., T., Emiliano; Pickering, Andrew (Ed.) (2015). Science as it could have been. Discussing the contigencialist/inevitabilits Problem: University of Pittsburgh Press.

PUBLICADO POR
Nelson Vaz
Colunista Colaborador
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