Nelson Vaz
No texto anterior (“Flexibilidade” blog SBI 01/04/2020) comentei a visão da saúde como equilíbrio, a harmonia do organismo. Gregory Bateson (1972) discutiu o processo evolutivo como dependente da “flexibilidade” dos seres vivos, o que possibilita entender o adoecer como limitações nesta flexibilidade, em oposição à ideia de uma patologia específica. A oposição entre estes dois modos de ver —fisiologia espontânea versus patologia específica— permeia a Biologia contemporânea e afeta poderosamente o pensamento na imunologia.
René Dubos analisou em detalhe a participação de Pasteur na história da medicina e da imunologia e fez um comentário significativo:
“Em seu primeiro artigo biológico, publicado em 1857, aos 35 anos, ele (Pasteur) corajosamente propôs o que chamou deTeoria dos Germes da Fermentação - ou seja, propunha que cada tipo de fermentação é causada por um tipo específico de micróbios. No mesmo trabalho preliminar ele sugeriu, sem qualquer evidência, que essa teoria poderia ser generalizada, e ousadamente, anunciou uma etiologia microbiana das doenças. Eventualmente, esta doutrina da etiologia específica o levou à prática de vacinações específicas.” (Dubos, 1974). (ênfase adicionada)
Vinte anos depois, Pasteur publicava sua teoria dos germes das doenças infecciosas, que incluía como item importante a possibilidade de vacinação específica com germes atenuados, uma das ideias que dominou o período fundador da imunologia
Duas outras ideias importantes foram:
- a caracterização dos anticorpos específicos (uma resposta específica a uma patologia específica) e.
- a auto-tolerância (o horror autotoxicus, de Ehrlich, que exclui as interações do corpo consigo mesmo (afasta a ideia de uma atividade imunológica espontânea, fisiológica)
A ideia de anticorpos como reagentes específicos foi muito reforçada pelo sucesso da soroterapia da difteria, que fortaleceu a ideia de que doenças são causadas por toxinas específicas e neutralizadas por antídotos específicos — a coroação da patologia específica— e, pela sorologia diagnóstica de doenças infecciosas no laboratório clínico, que reforçou a ideia de que anticorpos são reagentes específicos produzidos pelo corpo em sua própria defesa.
Dubos (1959 / 117) nos alerta de que a etiologia específica das doenças infecciosas não era importante na medicina até a teoria dos germe de Pasteur/Koch no século XIX:
“ O ambiente interno
A despeito de sua simplicidade conceitual, quase pedestre em sua obviedade, a doutrina da etiologia específica desempenhou um papel pequeno no desenvolvimento do pensamento médico antes da era Pasteur-Koch. Até tarde no sec XIX, a saúde era considerada como a harmonia do indivíduo e seu ambiente e entre as diversas partes em operação no corpo. A doença ocorria quando o equilíbrio era perturbado, por qualquer causa. Essa filosofia médica foi expressa em muitas formas diferentes através da história. Entre os povos primitivos ela ecoa o desejo Navajo de viver "de acordo com o solo da montanha, o pólen de todas as plantas e outras coisas sagradas." Manter um equilíbrio adequado entre o yin e o yang era o objetivo dos médicos chineses, assim como o equilíbrio adequado entre os 4 humores do corpo era o aspecto mais importante da doutrina de Hipócrates. Rudolf Virchow considerava a doença como "vida sob condições alteradas" e concluiu daí que o médico deveria se preocupar com o ambiente total dos seres humanos e, então, não podia evitar tomar parte em ações políticas. Ainda outra forma da mesma doutrina surgiu nas vigorosas controvérsias estimuladas por Pasteur em suas intervenções na Academia Francesa de Medicina nos anos de 1880. "A doença”, afirmava seu oponente Pidoux, "é o resultado comum de uma variedade de causas internas e externas... que traz a destruição de um órgão por diversas vias que o médico deve procurar fechar.”
A teoria dos germes das doenças infecciosas e o uso das vacinas foram elementos importantes na adoção de uma patologia específica na medicina e na imunologia, em oposição aos conceitos vagos e abstratos simbolizados na doutrina Hipocrática, na medicina de até então:
“Equacionando a doença com o efeito de uma causa precisa — um invasor microbiano, lesão bioquímica ou stress mental — a doutrina da etiologia específica surgiu negando a visão filosófica da saúde como equilíbrio e tornou obsoleta a antiga arte da medicina. Por estranho que seja, no entanto, os conceitos vagos e abstratos simbolizados na doutrina Hipocrática, estão agora retornando à arena científica. A medicina Hipocrática adquiriu um significado mais profundo a partir das implicações das Teorias que Darwin e Claude Bernard estavam propondo ao redor de 1850 —mesmo antes de Pasteur e Koch fazerem suas contribuições sobre a etiologia das doenças. O Darwinismo implica em que o indivíduo e a espécie que sobrevivem e se multiplicam seletivamente são aquelas melhor adaptadas ao meio externo.” (Dubos, 1959).
Uma disputa subterrânea entre ideias sobre a flexibilidade do organismo e a patologia específica ocorreu nos anos 1950, com a proposta das teorias “seletivas” sobre a atividade imunológica e nos afeta diretamente hoje em dia. A primeira destas teorias foi proposta por Jerne. Com base em suas observações sobre a produção espontânea de uma grande multiplicidade de “anticorpos naturais”, Jerne (1951; 1954; 1955) defendia uma fisiologia espontânea, mais ligada a ideias de Claude Bernard (constância do “meio interno”; Noble, 2008) condizente com a medicina Hipocrática, baseada na harmonia do corpo. Dois anos depois Burnet (1957) modificou explicitamente a teoria de Jerne (1955) e propõe a teoria de seleção clonal, que despreza a ideia de uma atividade imunológica espontânea (natural) e adere à ideia de que linfócitos precisam ser especificamente ativados para funcionar. A proposta de Burnet, portanto, se alinha com a ideia de uma etiologia específica.
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Há um paralelo entre esta dicotomia — fisiologia espontânea versus etiologia específica—e teorias sobre a origem do câncer dos cientistas argentinos Ana Maria Soto e Carlos Schonnenschein, sediados nos Estados Unidos, há várias décadas, que se opõem à teoria dominante segundo a qual a causa do câncer são mutações somáticas (SMT, Somatic Mutation Theory). Em múltiplas publicações anteriores eles propõem uma teoria baseada na Biologia do Desenvolvimento, denominada “teoria da organização do campo tecidual” (TOFT, tissue Organization Field theory). Ou seja, uma teoria “tecidual” propões substituir a teoria “celular” dominante há várias décadas. Eles propõem uma “teoria do organismo” na qual afirmam que o estado padrão (default) das células de um metazoário é um estado de atividade e movimento constantes. Segundo eles:
“…(S)e alguém adotar a noção de quiescência como o estado padrão das células metazoárias, as células serão percebidas como objetos passivos que requerem estímulo para proliferar ou se mover; isto é, exigiriam fatores de crescimento para proliferar e fatores de motilidade para se mover. Se, pelo contrário, adotamos a proliferação e a motilidade como o estado padrão, as células se tornariam agentes que proliferam constitutivamente e se movem. Para regular a proliferação e a mobilidade, seria necessária a participação de fatores inibitórios e / ou restrições físicas. ” (Soto et al. 2016).
Aos numerosos textos que publicaram sobre este tema, eles somam agora uma revisão com uma extensa bibliografia (Soto and Sonnenschein, 2020). Não vou me estender agora em mais considerações sobre o trabalho notável destes cientistas, mas vou traçar paralelos entre a oposição que eles estabelecem (entre a SMT, Somatic Mutation Theory e a TOFT, tissue Organization Field theory) e o confronto de teorias “sistêmicas” com a teoria de seleção clonal, que é dominante na imunologia
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Críticas similares às apresentadas por Soto e Sonnenschein podem ser feitas à teoria de seleção clonal, na imunologia, segundo a qual, os linfócitos, que são as células primordiais na atividade imunológica, seriam células quiescentes que requerem estimulação e fatores de crescimento para serem ativadas. Na teoria clonal, após uma fase de imaturidade na qual o contato com auto-antígenos destrói clones de linfócitos auto-reativos, antígenos externos “estimulam” expansões clonais que geram a imunidade específica e a memória imunológica.
Uma ideia oposta a esta foi expressa antes da proposta da teoria clonal naquilo que Niels Jerne chamou de seu “testamento”, em 1954, quando sumarizou uma teoria sobre a produção de anticorpos em uma única página. Esta página continha uma frase em norueguês assinalada como “Muito importante”, que dizia : “É bom saber que o antígeno não participa da formação dos anticorpos.” (Soderqvist, 2003 /170) Com base em dados experimentais que coletara para sua tese de doutorado publicada poucos anos antes (Jerne, 1951), Jerne sabia que em todos os animais ocorre uma produção espontânea de uma grande variedade de imunoglobulinas, sem necessidade de estimulação externa, como parte do desenvolvimento do organismo. Esta ideia foi incorporada na “teoria de seleção natural da produção dos anticorpos” publicada no ano seguinte (Jerne, 1955).
Nesta etapa, Jerne não fazia referência alguma ao estado de ativação das células que produzem estas imunoglobulinas (que ele chamava de “anticorpos naturais”). Ele só abordou este problema 20 anos mais tarde, em sua teoria da rede idiotípica (Jerne, 1974a), na qual ele intui, sem chegar a descrever um mecanismo, que esta rede de interações entre os anticorpos é um processo “auto-suficiente”, que mantém a si mesmo e é o substrato da atividade imunológica (Jerne, 1974b).
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Ao propor uma teoria “tecidual” do câncer, ou seja, que os tumores derivam de distúrbios na organização tecidual (isto é, na biologia do desenvolvimento), Soto e Sonneschein se opõem à teoria dominante, que é uma teoria “celular”, segundo a qual o câncer tem origem em mutações em células isoladas. Similarmente, na teoria de seleção clonal o estado padrão (default) dos linfócitos é de repouso e eles requerem estímulos antigênicos e “fatores de crescimento e diferenciação” para atuar. Na teoria da rede idiotípica (Jerne, 1974), hoje quase esquecida, a atividade imunológica é um processo espontâneo, parte da construção e manutenção do organismo vertebrado. A meu ver, o que é usualmente visto como uma “resposta imune específica” são compensações que o organismo realiza para restabelecer o equilíbrio dinâmico de suas interações internas, das quais a rede idiotípica é um componente importante.
Em resumo, estes são dois exemplos particulares de uma disputa muito mais geral na Biologia, que confronta ideias hoje denominadas de “sistêmicas”, com a teoria de causas específicas. Ocorre que a ideia de causas específicas é tão bem sucedida na ciência atual que se torna difícil inclusive cogitar sobre a existência de teorias alternativas. Mas, como nos recorda J.Z.Young (1960):
“Para nós, hoje em dia, é natural falarmos do corpo como algo que tem uma estrutura e funções, como usualmente nos referimos a ele. Para o homem do século XVI, não habituado às máquinas, o corpo era composto dos 4 elementos: terra, ar, fogo e água. Cada um destes elementos colaborava para o temperamento do indivíduo, dando as “qualidades” de umidade, secura, calor e frio. A doença era um desequilíbrio destas qualidades naturais. No corpo, 4 humores representavam as qualidades. A bile negra, ou melancolia era armazenada no baço e equivalia à terra. O sangue era equivalente ao ar, e a bile amarela, ou cólera, ao fígado. O fleugma, ou pituita do nariz, supostamente secretada pelo cérebro, equivalia à água.”
O equilíbrio — a harmonia — entre estes elementos era a base da saúde desde a medicina de Hipócrates há milhares de anos atrás e o adoecer consistia em perturbações desta harmonia interna, ou melhor, de como esta harmonia interna fazia frente às variações do meio externo a que o organismos está exposto. Um exemplo menos remoto desta postura foi a proposta de Claude Bernard (Noble, 2008) sobre a constância de um “meio interno” onde vivem as células de nosso corpo. Contemporâneo de Pasteur, Bernard se opunha à teoria dos germes, segundo a qual a patologia específica das doenças infecciosas resultam do contágio com um micróbio específico, dizendo que, se o meio interno mantivesse sua harmonia, o organismo não adoeceria.
“Por volta de 1900, Pettenkofer na Alemanha, e Metchnikoff na França, com vários de seus associados, bebiam copos cheios de culturas bacterianas isoladas de casos mortais de cólera. Números enormes de vibriões do cólera podiam ser isolados de sias fezes; alguns destes experimentadores sofreram alguma diarréia, mas a infecção não se parecia ao cólera verdadeiro.” (Dubos, 1959/105)
Experimentos similares foram realizados mais recentemente em condições melhor controladas, como resultados similares.
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Diferenças individuais na suscetibilidade a doenças infecciosas são evidentes e há mesmo indivíduos que são “portadores sãos” de agentes patogênicos, como ocorre frequentemente na covid-19. Este é um problema sobre o qual a imunologia atual ainda tem muito pouco a dizer.
Bibliografia
Bateson, G. (1972). The role of somatic change in evolution. In Steps to an Ecology of Mind (pp. 346-363). New York: Ballantine.
Burnet, F. M. (1957). A modification of Jerne's theory of antibody production using the concept of clonal selection. Austr.J.Sci., 20, 67-69.
Dubos, R. (1959). Ambiente e doença. O Clima, a Praga das Batatas e o Destino dos Irlandeses (Cap. IV) (tradução N. Vaz). In "The Mirage of Health. Utopias , Progress and Biological Change" (pp. 86-). New York: Anchor Books.
Dubos, R. (1974). Pasteur’s Dilemma-The Road Not Taken.
AMS-News, 40(9), 703-709.
Jerne, N. K. (1951). A study of avidity based on rabbit skin responses to diphtheria toxin-antitoxin mixtures. Acta Pathol. Microbiol. Scand., 87 (Suppl. 1), 1-183.
Jerne, N. K. (1955). The natural selection theory of antibody formation. Proc. Natl. Acad. Sci. U.S.A., 41, 849-857. doi: http://dx.doi.org/10.1073/pnas.41.11.849
Jerne, N. K. (1974). Towards a network theory of the immune system. Ann. Immunol., 125C, 373-392.
Noble, D. (2008). Claude Bernard, the first systems biologist, and the future of physiology. Exp Physiol, 93(1), 16-26. doi:DOI: 10.1113/expphysiol.2007.038695
Soderqvist, T. (2003). Science as autobiography. The troubled life of Niels Jerne. New York: Yale University Press. p.170.
Sonnenschein C, & AM, S. (2020). Over a century of cancer research: Inconvenient truths and promising leads. . PLoS Biol 18(4):, 18, e3000670. https://doi.org/3000610.3001371/journal.pbio.3000670.
Young, J. Z. (1960). Doubt and Certainty in Science.
Oxford: Oxford University Press.
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