Nem imune, nem tolerante - Parte 2
15 de julho de 2020
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Nelson Vaz
Esta é a segunda de duas partes onde contesto o significado e qualifico termos básicos da imunologia, como imunidade, vacina, anticorpo e a tolerância
O esquema estímulo-resposta-regulação foi adotado pela imunologia desde sua fundação e é pouco provável que a proposta de abandona-lo seja sequer considerada. No entanto, falar em antígenos e anticorpos diz mais respeito ao interesse do imunologista, que ao que se passa no organismo. As observações imunológicas precisam ser e são específicas, mas as moléculas e as células observadas não tinham esta direcionalidade no organismo em que foram colhidas; elas eram componentes do organismo envolvidos em sua criação/manutenção e, como tais, reagiam com vários outros materiais, com outras moléculas e células do próprio corpo. O imunologista colhe imunoglobulinas naturais no organismo, mas admite estar colhendo anticorpos específicos (Vaz, 2011a, b; c; Vaz et al., 2011; Vaz and Carvalho, 2015; Vaz and Andrade, 2017).
A teoria de seleção clonal (Burnet, 1959) elege os linfócitos como elementos centrais na atividade imunológica e mede esta atividade pela expansão de clones específicos. Admite implicitamente que os linfócitos ativados estavam inertes no momento de sua ativação, mas não há nada inerte no organismo e há evidência experimental de que os linfócitos ativados estavam ativados (em ciclo mitótico) quando foram recrutados para a resposta imune. Muito mais linfócitos são concomitantemente ativados mas, como não reagem diretamente com o antígeno, não são considerados; a resposta imune considera apenas os componentes específicos, embora os demais componentes ativados tenham a ver com o operar do organismo e são compensações estruturais em sua organização desencadeada pelas perturbações geradas na imunização.
Perturbações não são estímulos e compensações não são respostas. Descrever o sistema imune com um “sistema” genuíno implica em evitar a “falácia das interações instrutivas” e aceitar que, ao manter sua organização vivente (autopoiética) invariante, as mudanças estruturais contínuas do organismo não são ditadas (orientadas, especificadas) pela interações com o meio em que o organismo opera. Os imunologistas “sabem” disto desde que aceitaram a primeira teoria de Jerne (1955) que propunha e existência de uma variedade enorme, quase inacreditável de anticorpos “naturais”, isto é, produzidos espontaneamente pelo organismo antes de estímulos antigênicos. Tantos e tão variados são estes anticorpos que muitos deles — milhares — reagem com detalhes antigênicos (epitopos) de qualquer macromolécula. Os imunologistas sabem que os linfócitos são ativados através de receptores de membrana (BCR e TCR) pre-existentes.
Raros, porém, foram os imunologistas que aceitaram a terceira teoria de Jerne (1974a) onde ele chamava que estes anticorpos “naturais” de idiotipos e propunha que eles era dinamicamente estáveis porque se entrelaçavam em uma rede. O pensamento ocidental é dominado por ideias aristotélicas de causa (Cecchi et al., 2001), mas a ideia de sistemas é contrária à ideia de instrução (ensino); o organismo não obedece, não muda estruturalmente de maneiras impostas por suas interações com antígenos. Na realidade, são os anticorpos (receptores) que o organismo naturalmente exibe em sua fisiologia que determinam quais interações serão vividas como imunogênicas, quais não. Não são os antígenos que promovem a formação dos anticorpos — são os anticorpos (receptores naturais) que promovem a ocorrência de antígenos.
A “tolerância imunológica” entendida como uma forma de não reatividade específica, talvez seja a pior ideia da imunologia, mais complicadora ainda que a ideia de estímulos e respostas.
Ela foi mencionada pela primeira vez por Paul Ehrlich (1900) com o nome de horror autotoxicus, apontada como uma lacuna da enorme amplitude de reatividade que seu trabalho apontava ao mostrar como é versátil a atividade imunológica; o corpo reage a tudo, mas não a si próprio. Embora Ehrlich pensasse que uma reação — nociva —ao próprio corpo não faria sentido algum (seria intensamente disteleológica, foram suas palavras), a ideia não é fácil de aceitar. Assim colocada no corpo, a atividade imunológica como que habita o corpo, mas não pertence a ele porque não interage fisiologicamente com ele. Mesmo assim, a ideia foi ressuscitada por Burnet meio século mais tarde (Burnet and Fenner), não com base em experimentos, mas apoiada em argumentos lógicos.
Experimentos do próprio Burnet tentando demonstrar a tolerância em ovos embrionados unidos por parabiose, falharam (Anderson and Mackay, 2014; ver Vaz, 2016). Mas, em 1953, Medawar e colaboradores demonstraram a indução experimental da tolerância a transplantes de pele entre linhagens de camundongos pela exposição de animais neonatos a células do doador (alogênicas)
(Billingham, Brent and Medawar, 1953). Medawar sugeriu que a (alo)tolerância se devia à perda seletiva de linfócitos reativos aos tecidos alogênicos, de alguma forma criada pela exposição neonatal. Burnet exultou com estes resultados e alguns anos depois os combinou com a teoria de Jerne sobre os anticorpos naturais (Jerne, 1955) e com uma teoria de Talmage (1957) apontando os linfócitos como origem dos anticorpos naturais, e propôs a teoria de seleção clonal como uma modificação da teoria de Jerne (Burnet, 1957).
Mas os dados de Medawar e colaboradores que tanto motivaram Burnet, estavam errados: os linfócitos alogênicos não são eliminados do organismo tolerante — ao contrário, eles aumentam de frequência e estão ativados (Bandeira et al., 1989). Tolerar um transplante alogênico envolve mais ativação celular que rejeitar este mesmo transplante. Hoje em dia, tudo isto deveria ser história. Já “sabemos” que o organismo forma “auto-anticorpos naturais” (Coutinho, Kazatchkine and Avrameas, 1995). Na realidade, “todos os anticorpos são “auto-anticorpos naturais” pois todos reagem com outros anticorpos — são anti-idiotípicos (Jerne, 1974a,b). Já não deveria ser surpreendente que a maioria dos linfócitos ativados em respostas imunes seja inespecífica (ref)VALE
Nosso trabalho enveredou pelo estudo da “tolerância oral” há 40 anos atrás e, desde então, nossos dados confirmam que há um outra coisa em curso na atividade imunológica, que não torna o organismo imune nem tolerante. Esta outra coisa é aquilo que se conserva na atividade imunológica que, no entanto, varia continua mente de estrutura e substitui imunoglobulinas e linfócitos por outros que lhes são equivalentes — uma frase que usamos como epígrafe no pequeno livro que escrevemos (Vaz et al., 1911d). Os perfis (padrões) desta organização invariante de relações entre componentes tem sido demonstrado por métodos que analisam a reação de imunoglobulinas em bloco (“todas”ao mesmo tempo) com misturas complexas de ligantes, ou seja, extratos de órgãos inteiros (Nóbrega et al., 2002) ou micro-array de proteínas arrumados por um braço robótico em uma lamínula (Cohen, 2013).
Finalmente, tentativas de mudar estes padrões pela imunização com antígenos tolerados por exposição oral mostraram não apenas o desencadeamento de fenômenos anti-inflamatórios que bloqueiam a síntese de outros anticorpos (Carvalho et al., 1993; 1994), as reações DTH (Ramos et al., 2008), a formação de granulomas (Carvalho et al., 2002) e modificam a cicatrização de feridas de pele em camundongos, como também alteram o perfil de células que infiltram as feridas e o padrão histológico de deposição de fibras de colágeno (Azevedo et al., 2012; Costa et al., 2016) na região da cicatriz. Estas são manifestações da atividade imunológica que estão muito distantes da defesa anti-infecciosa e começam a ilustrar a influência de linfócitos em outras áreas da organização biológica.
Estas informações básicas sobre a natureza da atividade imunológica se tornam ainda mais importantes no momento em que a humanidade busca uma vacina para a covid-19 por tentativa e erro, porque ainda desconhecemos a regras elementares de imuno-proteção — algumas vacinas funcionam, outras não. Evidentemente, maior atenção e maiores recursos precisam ser alocados para a pesquisa científica, mas não somente aquela diretamente ligada à produção de vacinas , mas também aos mecanismo básicos que tornam a produção destas vacinas possível.
Reservo meus comentários sobre a situação tão flúida da covid-19 para as próximas semanas.
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PUBLICADO POR
Nelson Vaz
Colunista Colaborador
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