A simplicidade dos invasores de corpos
01 de março de 2021
COMPARTILHAR Facebook Twiter Google Plus

Nelson Vaz 

Compartilho com todos a esperança de que as vacinas funcionem, mas não vejo essa solução com simplicidade. A atual pandemia foi prevista por vários cientistas que estudam vírus de animais silvestres que podem “transbordar” para os seres humanos, ocasionando as crises epidêmicas. Mas os vírus sempre estiveram em harmonia não só com animais silvestres, mas com tudo o que vive, incluindo as plantas, os animais domesticados e nós mesmos, seres humanos. A formação da placenta humana depende de genes de vírus que foram importados para o .genoma humano. Os vírus são parte do viver de todos seres vivos, não são invasores inimigos. O novo coronavírus se tornou um perigo para nós e há perigos maiores no horizonte, mas essas são complicações que nós mesmos criamos. Pelo entendimento atual, as pandemias resultam da confluência de dois fatores gigantescamente complicados: a abundância de vírus na natureza e a explosão populacional humana. 

 

Calcula-se que há entre 500 mil e 800 mil diferentes vírus em animais silvestres; não há como interferir nesse processo. Do nosso lado, a população humana, que levou 3 mil séculos para alcançar o primeiro bilhão de habitantes, ganhou no século seguinte mais 6 bilhões e meio, e vai chegar a 9 ou 12 bilhões até 2100. É importante descrever com (alguma) clareza esses problemas (quase) insolúveis para que o conhecimento científico não pareça cada vez mais reservado a uma elite que, afinal, não consegue resolver os problemas do povo e é cada vez mais desacreditada! Nesse caminho, acabaremos todos acreditando em soluções curtas, simples e erradas. Como a terra plana. Ou a especificidade da imunização.

 

Há um século e meio, acreditávamos que as doenças eram causadas por“miasmas”, coisas invisíveis, relacionadas a fedores e “maus ares” (“malárias”). Mas quando pensamos nas viroses como “invasões” de nosso corpo pensamos em algo muito parecido com “miasmas”. Em certo sentido, o vírus é isso mesmo: algo invisível que nos invade. Mas essa é uma daquelas soluções curtas, simples e erradas. Como surgiu essa virose? Como podemos nos proteger dela e de outras mais que — dizem os cientistas — poderão surgir e serem piores que essa?Queremos explicar o que se passa para poder intervir nesses acontecimentos. 

 

Para entender o entendimento da imunologia, preciso entender algo sobre a natureza do entendimento humano. Certas coisas ficam em “pontos cegos conceituais”, coisas que não vemos que não vemos; somos cegos a algumas de nossas cegueiras e um pequeno olho aberto nessa direção pode ser muito importante.

 

Quando o polimento de lentes tornou possível fabricar microscópios e telescópios, o que mudou não foi nossa capacidade de ver coisas muito pequenas ou ver muito longe: foi a realidade. Galileu disse isso mesmo; virou seu telescópio para os planetas e para a lua e disse: “O céu mudou!” — a Igreja não podia deixar esse homem livre. Que realidade é essa, então, que muda quando a gente põe lentes frente aos olhos? As explicações são também formas de relacionamento humano. Queremos explicar o que se passa. E o que se passa agora são coisas que interferem — gravemente — com o que consideramos real. Acabaram as torcidas de futebol e as olimpíadas., os concertos de rock! — talvez o Carnaval! E milhares de outros hábitos que considerávamos permanentes. Talvez tenhamos que explicar realidades, talvez haja mais de uma.

 

O problema das explicações é importante principalmente para a imunologia, porque a gente imagina que o corpo “sabe” que foi invadido por algo “estranho”,“mobiliza defesas”, se livra da doença com “anticorpos” e, ainda por cima, guarda uma “memória” desses eventos e fica “imune” a esse vírus, ou micróbio — e é exatamente isso o que queremos que uma vacina contra o coronavírus faça! 

 

Há 50 anos eu era um imunologista convencional, até bem sucedido. Tinha ido para Nova York e tinha tido sucesso em pesquisas sobre a genética das respostas imunes. Uma conjunção de dois acontecimentos mudou meu modo de ver a imunologia e a própria natureza do viver. O segundo acontecimento foi encontrar um jovem neurobiólogo chileno que me fascinou com conversas parecidas com essa que descrevo acima, e eu nunca tinha escutado. Francisco Varela era budista e falava coisas incríveis sobre o cérebro humano, como podemos ver o mundo e falar sobre ele. E sem saber direito quem ele era, eu o convidei para o pequeno laboratório que eu chegava, onde acabava de tropeçar no primeiro acontecimento que mudaria minha carreira desde então: nós constatáramos que um camundongo forma mil vezes menos anticorpos para um proteína se antes ele a ingerir com um alimento!

 

Vocês nunca ouviram falar nisso! Que os animais “travam” sua reatividade aos antígenos que contactam por via digestiva — um fenômeno conservador, sistêmico. Isso deveria estar na primeira página dos livros de imunologia, mas não está. Não está porque contradiz e complica enormemente coisas que já sabemos e o que queremos é discutir sobre agentes invasores, “mobilização de defesas”,“memória imunológica” e, claro, aplicar logo uma solução simples, fabricável, ou seja, a vacina. 

 

Quando um animal ingere novas proteínas em um alimento, linfócitos são mobilizados e adquirem novas relações com outros linfócitos; o intestino está cheio de linfócitos ativados. Isso resulta no recrutamento mais ou menos permanente de imunoglobulinas naturais que podem reagir em novos circuitos que incluem detalhes dessas proteínas. O problema da atividade imunológica não é distinguir entre o próprio corpo e um corpo estranho — self e nonself —, mas manter níveis estáveis de atividade linfocitária. A fisiologia imunológica é conservadora. O problema é entender o que se conserva nessas mudanças.

 

Esse modo de ver é útil para entender mais rápida e claramente a imunidade anti-infecciosa, pois nenhum ser vivo está isento de contágio por incontáveis vírus e micróbios. Cerca de um terço de todos os seres vivos vive às custas (explora, parasita) outro ser vivo. A situação usual não pode ser bem descrita como uma batalha entre invasor e invadido, não é episódica, é processual, contínua, e seus elementos principais não estão entre os mortos e feridos, mas sim entre a enorme maioria de entes saudáveis. A fisiologia do organismo é a fisiologia de entes saudáveis. Já nos acostumamos aos métodos de amplificar DNA/RNA que nos mostraram que a microbiota nativa, com que cada um de nós convive harmonicamente em seu viver, é gigantesca e muito diversificada. 

 

As doenças são acidentes de percurso e não invasões malévolas vindas do desconhecido. Mesmo quando somos invadidos por vírus e micróbios recém-chegados, nossa microbiota nativa e os muitos vírus que já abrigamos participando que acontece. Se tudo corre a contento, mantemos nosso equilíbrio.

 

Durante duas centenas de milhares de anos, os seres humanos, assim como as plantas e os animais ao seu redor, não sofriam de doenças infecciosas agudas, nem eram dizimados por epidemias. As doenças infecciosas agudas que, desde oNeolítico, afetaram plantas e animais não domesticados, ocorreram por intervenção direta ou indireta de seres humanos. Tudo o que os seres humanos fazem pode ser considerado “natural” assim como tudo que os pássaros fazem, mas as doenças infecciosas agudas não são fenômenos naturais nesse sentido:elas surgiram como acontecimentos recentes, são fenômenos históricos ligados à invenção da escrita, da escravidão e da agricultura de cereais em campo fixo, entre 12 e 5 mil anos atrás, e que possibilitaram o surgimento dos primeiros Estados. Mais que invasões inesperadas por vírus e micróbios desconhecidos, as doenças infecciosas agudas são fenômenos criados por um modo de viver humano, que não é nem permanente, nem o único possível, e não foi o modo de viver humano durante quase toda a sua existência no planeta.

 

Assim como o aquecimento global e a contaminação do mar e do ar por microplásticos, a covid-19 é uma criação do modo de viver cosmopolita e da exploração desregrada e aviltante do nosso entorno. Mas contra essa ameaça em particular — a pandemia —, existe a esperança de vacinas, e a imunologia tornou-se o assunto dominante na mídia. Contra o pandemônio que criamos, não há vacinas. O entendimento da imunologia que resulta da aceitação das doenças infecciosas agudas como criações humanas, não vê os anticorpos como antídotos específicos que o corpo fabrica em sua própria defesa. A defesa imunológica — a imunidade — é um resultado, uma consequência dos mecanismos do viver, que, claro, dado o nosso modo de viver atual, não dispensam a interferência da vacinação, mas inclui a adoção de outros modos de vida, como, aliás, vimos experimentando com algum sucesso nos últimos meses. Ou podemos continuar apostando todas as fichas nas soluções simples, acreditando que se pode reforçar uma “memória imunológica” com vacinas. Pois é. Só que não.

 

Belo Horizonte, 2 de dezembro de 2020

 

——————

Coletânea de ideias reunidas em pequenos textos meus pelo Prof, Beto Vianna (UFS) Publicado em <https://blogdoconde.net/2020/12/02/a-simplicidade-dos-invasores-de-corpos/ > 14/12/2020

PUBLICADO POR
Nelson Vaz
Colunista Colaborador
ver todos os artigos desse colunista >
OUTROS SBLOGI
“Nada se perde e nada se cria, tudo se transforma.” Estudo desvenda como o produto do metabolismo glicolítico dos queratinócitos pode alimentar a inflamação tipo 17 na pele
SBI Comunicação Vaz
25 de novembro de 2024
Uma via imunoendócrina dependente de IFN-γ promove redução da glicemia para potencialização da resposta imunológica antiviral
SBI Comunicação Vaz
04 de novembro de 2024
Restrições alimentares e hídricas aumentam a suscetibilidade a patógenos resistentes a antimicrobianos
SBI Comunicação Vaz
04 de novembro de 2024