Abrir mão da certeza
Nelson Vaz
Em uma palestra na reunião da SBPC durante os anos de chumbo da ditadura Darcy Ribeiro fez uma palestra corajosa e brilhante intitulada “Sobre o óbvio” na qual ele dizia que os cientistas lidam com o óbvio e mostram, muitas vezes, que o que parecia óbvio era “uma treta de Deus”- (Ribeiro, 1986). Os cientistas são profissionais da dúvida e nossos maiores obstáculos estão em nossas certezas, naquilo que sabemos com segurança. A história nos dá muitos exemplos de que as certeza mudam. “Não se iluda: o passado muda.” (Vaz, 1997). Sim, até nosso passado pode mudar e nos fazer abandonar crenças que pareciam inabaláveis. Abrir mão de nossas certezas é muito difícil, quase impossível, mas isso torna nossa aventura mais emocionante. Sentar um dia e considerar “o tanto que não sabíamos”, como faz James Scott em sua introdução a seu livro fantástico sobre a história da agricultura de cereais e como isto levou a epidemias que quase acabaram com a humanidade (Scott, 2017)
A ameaça atual pelo covid-19 torna claro que ainda vivemos uma imunologia Pasteuriana, apoiada na teoria dos germes, segundo a qual o contágio eventual com um agente patogênico conduz ao adoecer. Na ausência de drogas anti-virais eficazes ficamos com a esperança de uma vacina que nos proteja do covid-19, mas não há garantia de que ela seja sequer possível; as vacinas ainda são inventadas por tentativa e erro, como fazia Pasteur.
Em 2020, esta grave lacuna no conhecimento sobre a imunologia de doenças infecciosas se torna importante novamente. Nas infecções pelo covid-19, assim como em outras infecções, há diferenças significativas na suscetibilidade individual. Muitas pessoas infectadas pelo covid-19 permanecem sem sintomas e isto complica muito sua epidemiologia. O adoecer também tem sido raro em crianças, enquanto idosos são sujeitos a quadros mais severos e concentram a maior parte dos óbitos. A “gripe espanhola” de 1918 tinha um perfil completamente diferente e era mais grave em adultos jovens. Não sabemos por que isso ocorre.
E se o contágio não conduz necessariamente ao adoecer, não sabemos ainda explicar como se adoece. O vírus é necessário, mas não suficiente. Não sabemos o que, efetivamente desencadeia o adoecer e determina sua severidade. Do mesmo modo, a exposição a materiais alergênicos não é suficiente para tornar um organismo alérgico; assim como a presença de linfócitos ativados para peptídeos autólogos e a presença de auto-anticorpos, na grande maioria dos casos, não desencadeia doenças autoimunes. O mecanismo linear causal em que muitas vezes acreditamos, não é válido.
Quantas outras coisas participam deste processo do adoecer? Em artigo recente, Casedavall and Pirofski (2018) apontam onze fatores que afetam a suscetibilidade a doenças infecciosas. O enorme número de combinações entre estes fatores parece tornar o problema é intratável. Vários destes fatores dependem do hospedeiro — imunidade prévia, genética, idade, sexo, microbioma nativo e nutrição; outros derivam do meio: temperatura, ambiente; outros ainda das circunstâncias do contato: chance, inóculo, histórico do hospedeiro.
Todos estes são fatores que influenciam a patogenicidade, mas não falam dos mecanismos ligados diretamente à natureza do adoecer, isto é, não descrevem o que leva às lesões celulares que são o verdadeiro substrato do adoecer. Esta distinção entre “o normal e o patológico”- (Canguilhem, 1952/1991) é um tema escorregadio. Nas doenças infecciosas as lesões celulares surgem quer por ação direta do agente infeccioso e seus produtos, como toxinas; mas também, e às vezes principalmente, pelo conjunto de mecanismos “de defesa” do corpo que lesam os tecidos em reações inflamatórias. Usualmente se pensa que as doenças infecciosas surgem de respostas imunes insuficientes, as alergia resultam de respostas excessivas, e as doenças autoimunes são respostas desviadas de seus alvos. Esta imunopatologia seria uma espécie de imposto cobrado pelo serviço de eliminação de invasores do corpo; danos por um “fogo amigo”.
Mas este modo de ver ignora que existe uma atividade imuniológica natural, espontânea, que surge sem ser estimulada e está presente mesmo em animais mantidos em condições “insentas-de-antígenos” (antigen-free) (Haury et al., 1997). Deveríamos entender a patogênese como desvios, perturbações de mecanismos fisiológicos (“normais’) da atividade imunológica, mas isto é difícil porque a imunologia nasceu associada à medicina, ao estudo do adoecer. Uma fisiologia imunológica ainda está por ser descrita.
A atividade imunológica é parte da construção e manutenção do organismo vertebrado. Há muitas evidências de que linfócitos e imunoglobulinas participam da imunidade anti-infecciosa, isto não está em discussão, mas não se conhece como isto ocorre em cada caso. E são poucos os mecanismos invocados, tais como a neutralização de toxinas, a fagocitose e a ativação de sistemas enzimáticos, como o sistema Complemento. Às vezes, ocorrem cascatas de citocinas com consequências catastróficas.
Abrir mão da ideia de que já entendemos o funcionamento das vacinas é difícil. Criticar o uso de vacinas é desaconselhável e muito perigoso no cenário atual. Nos Estados Unidos, a incidência do sarampo tem crescido pelo aumento do número de crianças deliberadamente não vacinadas, porque pais mal informados confiam na “imunidade de manada” e são c vacinam seus filhos para evitar malefícios indefinidos. No Brasil, o descaso oficial com a continuidade dos programas de vacinação é ameaçador e nos preocupa. No passado recente, o desmonte da União Soviética levou ao colapso destes programas de vacinação e doenças como a difteria surgiram novamente nas crianças.
Por outro lado, entre os cientistas, principalmente entre imunologistas, encarar nossa ignorância sobre o que ainda falta entender sobre o mecanismo de ação de vacinas é saudável e absolutamente necessário. Abrir mão do suposto entendimento de que vacinas agem pela produção de anticorpos específicos é difícil, mas é sensato.
Bibliografia
Canguilhem, G. (1991). The Normal and the Pathological.
New York: Zone Books.
Casadevall, A., & Pirofski, L. A. (2018). What Is a Host? Attributes of Individual Susceptibility. Infect Immun, 86(2), e00636-00617. doi:10.1128/IAI.00636-17
Ribeiro, D. (1986). Sobre o obvio.
Rio de Janeiro: Guanabara.
Scott, J. C. (2017). Introduction: A Narrative in Tatters: What I didn’t know. In Against the Grain. The Deep History of the Earliest States”. New Haven: Yale University Press.
Vaz, N.M.(1997) Lado Alado. Coleção Poesia OrbitalOrg. Adriana Versiani et al.
Belo Horizonte, Associação Cuttural Pandora
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