As vacinas ainda são problemas
29 de outubro de 2020
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Nelson Vaz

A ideia de “imunidade” anti-infecciosa é, provavelmente, milenar. Deve ter surgido nas epidemias do período neolítico, entre 5-10 mil anos atrás e crescido nas epidemias da Idade Média. No fim do século 18, Jenner inventou a vacina contra a varíola, mas este foi um episódio isolado, antes de se saber da existência de micróbios e vírus patogênicos e, curiosamente, não foi investigado na época. A imunologia surgiu no século 19, com a “teoria dos germes”, pelo trabalho de Pasteur e Koch (com seus “postulados), quando estudos sobre como inventar novas vacinas foram cruciais. Anticorpos (antitoxinas) só foram caracterizados 12 anos mais tarde e possibilitaram a soroterapia da difteria, que foi a tradução mais bem sucedida de dados de laboratório para a clínica de toda a história a medicina. A soroterapia levou também à caracterização da doença do soro e à noção de alergia. Na imunologia, a imunidade (e a alergia) passa(m) a ser explicada(s)  pela formação de anticorpos. Na maioria dos casos, entretanto, esta  associação não foi testada ou comprovada experimentalmente. Linfócitos têm uma ligação ainda mais tênue com a imunidade anti-infecciosa e só chegam a ser implicados na imunologia dos anos 1950.

Uma variável de óbvia importância das doenças infecciosas é a suscetibilidade individual. Muitos micróbios e vírus potencialmente patogênicos produzem infecções assintomáticas (os indivíduos são ditos “portadores sãos”). O adoecer não é simplesmente imposto pelo contágio com os germes. Claude Bernard, contemporâneo de Pasteur, se opunha à teoria dos germes  e dizia que se o “meio interno” do organismo, onde vivem todas as células, mantivesse suas propriedades constantes, o adoecer não ocorreria. Esta disputa entre a etiologia específica e mecanismos conservadores da harmonia do corpo, reflete uma oposição muito mais ampla e antiga entre a noção de “causas” e a ideia de que os processos naturais são espontâneos, ocorrem por si mesmos e, no caso do adoecer, o processo depende de relações complexas entre o “agente” (aquele que “age”)  infeccioso e o organismo. O próprio conceito de “alergia” sugere que o corpo pode lesar a si próprio e que mecanismos “alérgicos” podem participam da patogênese de doenças infecciosas.

Vacinas induzem artificialmente a imunidade a doenças infecciosas. A humanidade deve às vacinas ter escapado de uma enorme quota de sofrimento e morte. A história da imunologia sugere que a imunidade depende da produção de anticorpos: os dois fenômenos, imunidade e anticorpos, surgem juntos e experimentos in vitro e ex-vivo mostram anticorpos podem ativar enzimas e facilitar a fagocitose de micróbios e vírus. No entanto, na maioria das doenças, os mecanismos pelos quais os anticorpos (supostamente) geram a imunidade in vivo não são suficientemente conhecidos. Em doenças por micróbios que secretam exotoxinas (difteria, tétano, gangrena gasosa) e em viroses que fazem uma passagem pelo sangue (viremia), anticorpos podem “neutralizar” toxinas e vírus e impedir sua ação sobre as células. Por facilitar a fagocitose (opsonização), anticorpos  provavelmente são importantes na pneumonia bacteriana. Mas a soroterapia foi tentada sem sucesso em numerosas doenças infecciosas; por si só, isoladamente, anticorpos só excepcionalmente são protetores.

Em resumo, os mecanismos imunológicos de imunidade são, em grande parte, desconhecidos. Isto pode soar como uma grande surpresa para o público e não especialistas, mas pode ser facilmente comprovado.

Linfócitos e anticorpos existem apenas em animais vertebrados; na imensa maioria dos animais, numerosos mecanismos de defesa são herdados mendelianamente e constituem uma imunidade “inata”; muitos destes mecanismos (“inatos”) operam também nos vertebrados. Existem também mecanismos rotulados de “tolerância a doenças” que consistem de processos que não estão dirigidos à eliminação da infecção, mas permitem ao organismo continuar vivendo a despeito da infecção potencialmente patogênica. Além de linfócitos, muitos outros mecanismos participam da “tolerância a doenças” que não deve ser confundida com a “tolerância específica” da imunologia, uma espécie de oposto da memória imunológica (uma ”amnésia” específica) que impediria, por exemplo, respostas imunes contra componentes do próprio corpo, ou contra seus alimentos ou sua microbiota nativa.

Em virtude destes e outros problemas, a invenção de novas vacinas anti-infecciosas continua a ser tentada empiricamente com um altíssimo grau de fracassos. Um melhor entendimento dos processos imunológicos básicos é urgentemente necessário para a invenção e uso de vacinas anti-infecciosas. Mas a dimensão de nosso desconhecimento é ainda muito maior pois não conhecemos em detalhe os próprios mecanismos  patogênicos como distúrbios de nossa fisiologia. Além disso,  epidemias e pandemias resultam de fatores dificilmente controláveis como o crescimento da população e a invasão de nichos ecológicos terrestres e oceânicos pela atividade humana baseada em interesses econômicos e a existência de milhares de vírus que vivem em harmonia com animais silvestres.

PUBLICADO POR
Nelson Vaz
Colunista Colaborador
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