Na comunicação de hoje convidei meu amigo, o Prof. Adolfo Firmino Neto (UFJF, Juiz de Fora MG) para apresentar um artigo recente e notável de Daniel J. Nicholson (Exeter, Inglaterra) sobre a célula viva — convite que ele desempenhou brilhantemente, já que se trata de um artigo longo e extremamente complexo. Sigo há vários anos o trabalho de Nicholson em sua preocupação em denunciar a metáfora do organismo como máquina. O artigo resenhado (Nicholson, 2019) é seguido por um capítulo de livro Nicholson, 2020), também notável, no qual ele apresenta o problema de “escala”: como podemos lidar com fenômenos microscópicos, onde vigora o movimento browniano, como se fossem macroscópicos e estivessem sobre o efeito da gravidade e da inércia. Carl Woese disse que a Biologia está hoje no estado em que estava a Física há um século atrás, em 1920, quando os resultados da teoria da relatividade e da teoria quântica ainda não tinham afetado nosso modo de ver o mundo. Decerto, no futuro imediato imediato viveremos uma transformação, acidentalmente acelerada pelo surgimento da covid-19 que mudou nossos hábitos.
Nelson Vaz
Nicholson, D. J. (2019). Is the cell really a machine?
J Theor Biol, 477, 108-126. doi:10.1016/j.jtbi.2019.06.002
Um grande problema conceitual na Imunologia é a adoção de analogias, por exemplo comparar o sistema imune a um exército, conferindo ao mesmo uma intencionalidade funcional, como se o dotasse de um raciocínio humano. Este modo de ver tem consequências no entendimento do sistema imune em sua organicidade. O uso de figuras de linguagem e os problemas que decorem disso não é exclusivo da Imunologia, mas da Biologia como um todo. Daniel J. Nicholson, historiador e filósofo da Biologia, aponta de forma contundente problemas conceituais e incongruências com observações recentes, que derivam de comparações de células com máquinas.
A partir de uma pergunta instigante: A célula é realmente uma máquina? Nicholson dá vários exemplos que tornam claro, que a comparação entre células e máquinas, muito mais que uma metáfora didática, se tornou um modelo conceitual, que influencia a maneira dos biológicos enxergarem a estrutura e o funcionamento celular, ignorando evidências experimentais fora desse modelo.
Esta visão mecanicista está apoiada nas ideias de que a estrutura celular pode ser concebida de forma estática e que, uma vez determinada, esta estrutura tem uma funcionalidade específica. Este problema também está presente, por exemplo, na Imunologia, na ideia de que anticorpos e clones de linfócitos específicos explicam, isoladamente, os fenômenos envolvidos na imunidade. Nicholson descreve em detalhe vários aspectos da visão mecanicista da célula, aponta momentos críticos da história da Biologia, como o da confluência da bioquímica de proteínas com a genética, nos anos de 1950. Critica a importação de ideias oriundas da ciência da computação e da engenharia, como software (o genoma) e hardware (os componentes moleculares, as organelas) e o conceito de um projeto previsível. Ele também discute as limitações de dessa forma de ver a célula e as suas consequências, sendo o próprio surgimento da Biologia Molecular um de seus efeitos mais notáveis.
Segundo Nicholson, a adoção desta metáfora, que ele denomina de MMC, Machine Model of Cell, ignora princípios que já são conhecidos desde os anos 1920, em função do desenvolvimento da mecânica quântica, como a maleabilidade e estocaticidade do mundo molecular que, em tese, deveriam levar ao entendimento de que os eventos intracelulares são probabilísticos, em vez de especificamente determinados. Este modo de ver deriva de técnicas de observação limitadas a mostrar como estruturas estáticas processos que, na sua essência, são dinâmicos. Algo como contar a história de um filme apresentando apenas fotogramas. Como exemplo, a ideia de um citoesqueleto, que na verdade é fruto de um equilíbrio dinâmico entre montagem e desmontagem simultânea de monômeros da estrutura.
O conjunto das ideias mecanicistas vigentes sobre a célula e os seres vivos é reunido no que o autor denomina de modelo de auto-montagem, ao qual ele contrapõe o modelo de auto-organização. Este último considera a estocacidade dos fenômenos biológicos, a fluidez do meio, e as variações de energia a que os componentes moleculares estão sujeitos no ambiente intracelular e aponta a importância do movimento browniano e das variações de energia do meio no comportamento de moléculas no ambiente intracelular.
Na perspectiva da auto-organização, a estrutura molecular não é determinante da função, mesmo porque a estrutura está sujeita a variações em decorrência das condições do meio. Por exemplo, este modelo acomoda observações sobre as proteínas intrinsicamente desordenadas (IDPs) que, como o próprio nome indica, não possuem uma estrutura funcional única (Dunker et al., 2008), algo que na perspectiva mecanicista não deveria existir. Nem a própria função no modelo de auto-organização é uma característica específica. É cada vez mais comum, encontrar enzimas que atuam de forma promíscua, catalisando reações com substratos distintos, algo que deveria ser seriamente investigado com relação às moléculas envolvidas na imunidade.
O mais incrível desta discussão, é que boa parte da argumentação apresentada em favor da auto-organização celular é de exemplos colhidos na própria biologia molecular. Foram avanços nas técnicas de observação que mostraram a dinâmica da célula e do organismo vivo, que não é compatível com o modelo estático da auto-montagem. Por exemplo, duas células com o mesmo genoma, sujeitas ao mesmo ambiente e expostas aos mesmos fatores de transcrição, expressam genes de forma distinta (Chelly et al., 1989).
Esta forma de ver os fenômenos biológicos impacta a visão não só da célula, mas também do que entendemos como o organismo vivo. Afinal, se não existe um projeto determinado que explica a estrutura e o funcionamento celular, não é possível explicar o organismo nesses termos. Embora o modelo de auto-montagem atribua à complexidade as características dos sistemas vivos, e admita que o meio é importante, naquilo que passou a se denominar epigenética, a ideia central ainda vê células e organismos na condição de máquinas, ainda que complexas, e com a capacidade de gerar novas máquinas semelhantes.
É cada vez mais difícil acomodar o conjunto de evidências experimentais na visão ortodoxa mecanicista. Os dados obtidos através de microscopia em célula viva (Lippincott-Schwartz et al., 2000), marcação de proteínas com substâncias repórter no interior da célula (Deniz et al., 2008), e até mesmo um outro olhar sobre resultados obtidos por técnicas clássicas, como o comportamento da estrutura molecular de componentes celulares por ressonância magnética nuclear, permitem retomar a discussão sobre a natureza probabilística da vida. (Mayer, 2009). O que seria uma grande revolução na própria compreensão do que é o viver.
Referências:
Chelly, J., Concordet, J.P., Kaplan, J.C., Kahn, A. (1989). Illegitimate transcription: Transcription of any gene in any cell type. PNAS 86: 2617–2621
Deniz, A.A., Mukhopadhyay, S., Lemke, E.A. (2008). Single-molecule biophysics: At the int of biology, physics and chemistry. Journal of the Royal Society Interface 5: 15–45
Dunker, A.K., Silman, I., Uversky, V.N., Sussman, J.L. (2008). Functiondisordered proteins. Current Opinion in Structural Biology 18: 756–764.
Lippincott-Schwartz, J., Roberts, T.H., Hirschberg, K. (2000). Secretory protein trafficking and organelle dynamics in living cells. Annual Review of Cell and Developmental Biology 16: 557–589.
Mayer, B.J., Blinov, M.L., Loew, L.M. (2009). Molecular machines or pleiomorphic ensembles: Signalling complexes revisited. Journal of Biology 8: 1–8
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