Dois vídeos
22 de outubro de 2020
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Dois vídeos
Nelson Vaz
Primeiro vídeo
Amebas em vida livre se alimentam continuamente de protozoários menores e bactérias que eventualmente encontram e englobam (a fagocitose). No primeiro vídeo, ([1]), uma ameba “tenta” englobar um protozoário maior, um stentor. A intencionalidade nos parece evidente na ameba, e, no stentor que, uma vez capturado, “tenta escapar” — o que consegue ao final do vídeo, deixando para trás boa parte do seu corpo. Como pode a ameba detectar a presença do Stentor, se fixar ao mesmo e “tentar” englobá-lo?
 
Amebas de vida livre (Acanthoameba) expostas a uma mistura de hemácias de carneiro e de cavalo, fagocitam apenas as hemácias de carneiro (Rabinovich, 1970). Mais tarde se mostrou que isto se dá porque moléculas na membrana da ameba se encaixam em sequências de galactose presentes nas hemácias de carneiro, que não existem na hemácia de cavalo. Portanto, as amebas parecem escolher as hemácias de carneiro mas não sabem que as escolheram, atuam sem intencionalidade. São um exemplo do que Gregory Bateson chamava “mentes sem consciência”.
 
Uma ameba procura alimentos no meio em que vive? Ou, simplesmente se move empurrada por sua dinâmica estrutural e esbarra em materiais presentes no meio em que vive (outros pequenos protozoários), para os quais tem “receptores” na membrana e os fagocita. Ela encontra alimento porque se move e se move porque encontra alimento e mantém seu modo de viver. Esta detecção de alimentos depende da existência de moléculas designadas como “receptores” na membrana da ameba. Um problema epistemológico —ligado ao conhecer —encontra uma solução estrutural: o acoplamento de moléculas complementares, como a mão na luva, a chave na fechadura.
 
Como podem estas moléculas ser complementares? Elas resultam de uma história muito longa do viver —a filogênese de seres vivos que viveram juntos. Ainda é legítimo dizer que a ameba escolhe as hemácias de carneiro, mas notar também que isto é um comentário nosso e não confere um poder decisório à ameba. Não é preciso imaginar um pequenino fantasma na ameba, uma frágil consciência opaca com a qual ela se alimenta. O problema pode ser reduzido ao acoplamento de moléculas complementares.
 
Mas esta é uma solução mecanicista, tão insatisfatória quanto a ideia sobrenatural de colocar uma consciência na ameba. Como diz Gregory Bateson em um de seus últimos diálogos em Esalem, queremos uma solução que não seja “Nem sobrenatural, nem mecânica” (Bateson, 1980).
E a solução proposta com base em moléculas receptoras se complica ao vermos o 2º vídeo.
 
Segundo vídeo
O segundo vídeo mostra que uma planária regenera sua cabeça em apenas 5 dias ([2]). No 1º vídeo, vemos a ameba fazer algo no meio em que vive, interagir com o Stentor. Mas, ao ser “decapitada”, a planária realiza algo que lhe é interno. No primeiro dia depois da lesão, o fragmento sem “cabeça” ainda se move, mas no segundo e no terceiro dias, o movimento cessa e imaginamos que ela está a traçar estratégias sobre o que fazer.
 
O que a planária efetivamente “faz” internamente nos é invisível, mas, se o víssemos, o que veríamos? Provavelmente suas células a se multiplicar e a interagir umas com as outras, mudando de forma e se transformando em outras células. Certamente não compreenderíamos o que elas estão “fazendo”. Células não fazem o que organismos inteiros fazem. Sabemos que o resultado do que elas fazem é a regeneração, a re-criação da “cabeça” da planária com seus dois “olhinhos” perfeitamente colocados. Vemos o resultado de um mecanismo interior, que não entendemos e não temos palavras para descrever.
 
Uma contínua re-criação.
Mas o que está em jogo é algo ainda mais extraordinário. Sabemos que um ser vivo, como a planária, está continuamente re-criando a si mesma. A “cabeça” íntegra da planária que nada e se alimenta está se refazendo continuamente; seus “olhinhos” que reagem à luz, trocam continuamente componentes celulares e moleculares por outros que lhes são equivalentes. Tudo está em fluxo, tudo flui. Tudo muda e, no entanto, se conserva. A ameba e o stentor estão a se refazer continuamente, são processos dinâmicos.
 
Aquilo que vemos como “ações” — a ameba que “tenta” englobar o stentor que “tenta” escapar de seu abraço mortal —são aspectos que descrevemos em um domínio de interações, diferente e separado deste domínio estrutural onde imaginamos o contínuo refazer-se dos seres vivos, e vemos resultados deste processo, como a regeneração da planária.
 
A intencionalidade que colocamos na ameba, algo que nos parece mental, pode ser vista como um resultado do que se passa em sua dinâmica estrutural. Mas o próprio movimento da planária resulta de sua dinâmica estrutural, deste seu contínuo refazer-se a si mesma. Esta dinâmica estrutural, que é espontânea, e que subjaz a conduta do animal, nos é invisível e não temos sequer as palavras e os conceitos que nos permita mostrar como esta dinâmica resulta na conduta que nos parece mental.
 
Dois domínios de descrição
No 2º-3º dias, vemos a planária decapitada deter seus movimentos, como se pensasse e decidisse o que fazer a seguir para recriar sua “cabeça” — mesmo sem ter cabeça! Mas, nesta suposição tão vaga, estamos confundindo dois domínios de descrição que devem ser mantidos separados. O contínuo refazer-se dos seres vivos, esta contínua construção de si mesmo, esta autoconstrução, que Humberto Maturana (2002) chamou de autopoiese, é um processo espontâneo determinado por sua própria estrutura. Assim como a presença de receptores na membrana das amebas, toda esta rede complexa a que chamamos de metabolismo, também resulta de uma história muito antiga — a filogênese—, o processo que deu origem a todos os seres vivos, e que se repete na geração e manutenção de cada ser vivo individual — a ontogênese.
 
Gregory Bateson apontava este carácter mental dos processo biológicos. Dizia que para entender o processo evolutivo, era preciso entender a psicologia cognitiva, e vice-versa. O subtítulo do último livro que escreveu em vida “Mente e Natureza. Uma unidade necessária”, falava dessa semelhança (Bateson, 1980). Por sua vez, Maturana diz que” “A mente não está na cabeça: a mente está na conduta. (Maturana, 1985) e aponta para dois domínios de descrição que precisamos manter separados. Exatamente porque a mente está na conduta, é inútil procura-la na dinâmica de composição dos seres vivos, em sua dinâmica estrutural. O problema mente/cérebro é um pseudo-problema; não encontraremos mente alguma na estrutura dos seres vivos: a mente está na conduta e a conduta é exercida por organismos inteiros, não por seus componentes.
 
Os dois domínios de descrição apontados por Maturana precisam ser mantidos separados porque observar o que se passa em um destes domínios não permite deduzir o que se passa no outro. Conhecer um aspecto da dinâmica estrutural de um ser vivo não nos permite prever o que ocorre no domínio de suas interações com o meio, e vice-versa. Milhares de mudanças estruturais diferentes podem resultar na mesma interação com o meio, e uma única mudança estrutural pode ter milhares de consequências no domínio das interações. Se conhecemos bem um sistema em seus dois domínios, podemos desenvolver uma “dupla mirada” e fazer correlações entre mudanças nos dois domínios, mas as interações não determinam (não causam, não orientam, não decidem) as mudanças estruturais. As mudanças nos seres vivos são determinadas por sua própria dinâmica estrutural.
 
Um paralelo radical na imunologia
Assim como a mente não está no cérebro também não encontraremos a imunidade anti-infecciosa nas bases celulares e moleculares da atividade imunológica – como disse Vitor Pordeus: “A doença não está no corpo”.
 
A imunidade anti-infecciosa, a resistência de seres vivos às doenças infecciosas é um fenômeno observado no domínio das relações entre organismos e tem características mentais, nos dizeres de Bateson (1980), e, portanto, não pode ser reduzida a uma dinâmica celular/molecular. Os dois domínios de descrição, assim como propostos por Maturana (2002), são separados e o que se passa em um deles não determina o que se passa no outro.
 
Vou repetir o que disse no parágrafo anterior:
Se conhecemos bem um sistema em seus dois domínios (estrutural e interacional), podemos fazer correlações entre mudanças nos dois domínios, mas as interações não determinam (não causam, não orientam, não decidem, não instruem) as mudanças estruturais. As mudanças nos seres vivos são determinadas por sua própria dinâmica estrutural.
 
As interações de organismos vertebrados com macromoléculas produzidas por outros seres vivos são “imunogênicas” — estas moléculas são antígenos — , isto é, o contato com as mesmas resulta na ativação de clones específicos de linfócitos e na produção de imunoglobulinas que reagem com elas — anticorpos específicos. Mas a produção destes linfócitos e anticorpos específicos não é determinada (especificada, orientada, guiada) pelos antígenos — ela é determinada (especificada, orientada, guiada) pela própria dinâmica estrutural do organismo.
 
A observação imunológica — algo que tem começo, meio e fim —, é e precisa ser específica; mas as células e moléculas observadas não são (Vaz, 2011). No organismo em que foram colhidos, estes linfócitos e estes anticorpos não tinham a direcionalidade (a especificidade) a eles imputada pelo observador humano — o imunologista que os detecta e quantifica em procedimentos criados exatamente com esta finalidade.
 
Consequências
Não são os antígenos que determinam a produção dos anticorpos. Esta frase que parece contradizer a imunologia inteira, na realidade, aponta o que realmente se passa. Os imunologistas sabem que a formação dos anticorpos precede o encontro com os antígenos com os quais eles reagirão. Esta proposta foi feita pela primeira vez por Jerne em 1954, em uma única página onde ele resumiu a teoria que publicaria um ano depois e à qual ele se referia como seu “testamento”. Nesta página há uma frase grifada, ao lado qual está escrito, em dinamarquês: “Muito importante!!”. A frase começa dizendo: “É bom saber que o antígeno não participa da produção dos anticorpos.” (Soderqvist, 2003/170). O anticorpo que precede o antígeno já está preformado na membrana do linfócito, como um receptor (BCR); é este receptor que permite aos linfócitos reagir aos antígenos. Então são os anticorpos que determinam a existência (a relevância) dos antígenos.
 
Esta ideia não é nova na imunologia, ela apenas não é citada porque confunde os iniciantes. Mas as consequências de ignora-la são graves. Por exemplo, continuamos a inventar vacinas anti-infecciosas por experiência e erro, mais ou menos como fazia Louis Pasteur no século dezenove. É relativamente fácil induzir uma memória imunológica, uma prontidão em executar respostas imunes específicas mais intensas a vírus, micróbios e seus produtos, mas nem sempre (ou quase nunca) isto coincide com um aumento na imuno-proteção contra doenças infecciosas. Em uma estimativa recente publicada na Lancet (Gouglas et al., 2018), 94% das tentativas de produção de vacinas fracassa na fase experimental. É uma espécie de tiro-ao-alvo no escuro. Nesta escuridão está a dinâmica estrutural dos linfócitos e anticorpos que, certamente, exibe uma fisiologia conservadora que precisa ser melhor caracterizada (Pordeus et al., 2009; Vaz and Andrade, 2017).
 
A palavra-chave neste dilema e em muitos outros é especificidade. A imunologia, em particular, gravita em torno deste conceito; fenômenos considerados inespecíficos parecem secundários e menos importantes na atividade imunológica. Mas a análise da especificidade dos anticorpos, por exemplo, nos coloca na situação de quem dispõe de um grande molho de chaves para abrir diversas portas desconhecidas e, logo nas primeiras tentativas, se dá conta de que é fácil abri-las e as chaves não são assim tão especiais. Este foi o drama vivido por Karl Landsteiner, pioneiro no estudo da especificidade imunológica, que se deu conta de sua “degeneração” — um mesmo anticorpo reage com muitos antígenos, como uma chave que abre muitas portas. Mas Landsteiner adquiriu fama por ter caracterizado os “anticorpos naturais” que definiram os grupos sanguíneos e, ao receber o prêmio Nobel, em 1930, dizia estar sendo premiado “pelas razões erradas” (Vaz, 2000).
 
Sugiro acima e em outros textos (Vaz, 2011; Vaz and Carvalho, 2015; Vaz and Andrade, 2017) que a especificidade das reações imunológicas é inventada pelo imunologista. Embora isto não a torne menos real, torna menos compreensível seu significado natural e impede que se focalize a ativação inespecífica de linfócitos que acompanha todas as respostas imunes e pode mesmo ser muito mais intensa, e envolver mais linfócitos e imunoglobulinas que as reações específicas. Se existe uma fisiologia conservadora na atividade imunológica — e há fortes indícios de que ela existe —tanto as mudanças específicas quantos as inespecíficas podem ser vistas, igualmente, como compensações instituídas pelo organismo em resposta às perturbações introduzidas pela imunização ou pela doença infecciosa. Se existem padrões na dinâmica estrutural do sistema Imune — e há fortes indícios de que eles existem (Nóbrega et al., 2002; Cohen, 2013) — não saberemos sequer quais perguntas são relevantes antes de entender o que são estes padrões e como eles se formam.
Bibliografia
Bateson, G. (1980). Mind and Nature: A Necessary Unity.
London: Fontana.
Cohen, I. R. (2013). Autoantibody repertoires, natural biomarkers,
and system controllers. Trends Immunol, 34(12), 620-625. doi:10.1016/j.it.2013.05.003
Gouglas, D. et al. (2018). Estimating the cost of vaccine development against
epidemic infectious diseases: a cost minimisation study. Lancet -
Global Health, 6(12), E1386-E1396,.
Maturana, H. R. (1985). The Mind is not in the head.
J.Social Biol.Struct., 8, 308-311.
Maturana, H. (2002). Autopoiesis, structural coupling and cognition: a history
of these and other notions in the biology of cognition. Cybernetics & Human Knowing, 9(3-4), 5-34.
Nobrega, A., Stransky, B., Nicolas, N., & Coutinho, A. (2002). Regeneration
of natural antibody repertoire after massive ablation of lymphoid system: robust selection mechanisms preserve antigen binding specificities. J Immunol, 169(6), 2971-2978.
Pordeus, V., Ramos, G. C., Carvalho, C. R., Barbosa De Castro Jr., A.,
Cunha , A., P., & Vaz, N. M. (2009). Immunopathology and oligoclonal T cell expansions.Observations in immunodeficiency, infections, allergy and autoimmune diseases. Current Trends in Immunology, 10, 21-29.
Soderqvist, T. (2003). Science as autobiography. The troubled life of Niels
Jerne. New York: Yale University Press. Page 170
Vaz, N. M. (2000). Landsteiner: um dos fundadores da imunologia.
Ciência Hoje, 27(162), 87-89.
Vaz, N. M. (2011). The specificity of immunological observations.
Constructivist Foundations, 6(3), 334-351.
Vaz, N. M., & Carvalho, C. R. (2015). On the origin of immunopathology. J Theor Biol, 375, 61-70. doi:10.1016/j.jtbi.2014.06.006
Vaz, N. M., & Andrade, L. A. B. (2017). The epigenetic immune network.
Constructivist Foundations, 13(1), 141-159.
[1] https://youtu.be/FcCvhYmjaXE
 
[2] https://youtu.be/hTC1eNTBXvE

PUBLICADO POR
Nelson Vaz
Colunista Colaborador
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