Há uma trindade de conceitos centrais na imunologia— imunidade, vacinas e anticorpos — e entender sua história é importante para saber que a atividade imunológica é muito mais que o desencadeamento de respostas imunes específicas a estímulos antigênicos — o organismo não é simplesmente um respondedor, não obedece a comandos antigênicos, como se imagina que funcionam as vacinas.
Quando surgiu, a imunologia poderia ser chamada de vacinologia, era um ramo da bacteriologia médica que emergiu ao final do século XIX, como uma tentativa de gerar novas vacinas, isto é, meios artificiais de gerar imunidade anti-infecciosa. O fenômeno básico, portanto, é esta imunidade, a observação que certas doenças só ocorrem uma vez, não se repetem no mesmo indivíduo. Provavelmente isto foi constatado durante surtos epidêmicos ou na observação de doenças de crianças.
A imunidade criou as vacinas que criaram a imunologia — e não ao revés, como se supõe.
Este modo de ver, invertido, foi muito reforçado atualmente com o surgimento da covid-19 e a importância de vacinas geradoras de anticorpos neutralizantes (anti-vírus, anti-spike protein).
Neste modo de ver, o organismo é apenas o local ou dimensão na qual se dá a defesa anti-infecciosa — a neutralização — , uma disputa entre antígenos e anticorpos, e não se vê que a restauração da saúde — a cura — depende de muito mais, depende da recuperação da harmonia de operação do organismo.
Um imunologista fictício que tentasse inventar uma vacina contra a varíola, esbarraria na falta de um modelo animal para esta doença e não inventaria a vacina que Jenner inventou. A própria ideia de “reação cruzada” deprecia a ideia que quero defender. Em sua geração, a imunidade anti-infecciosa está longe de ser “específica”, como é universalmente aceito.As respostas imunes específicas seguem uma lógica “centrada no antígeno”, começam com o antígeno, é como se o corpo obedecesse a comandos antigênicos. A exposição a um material antigênico perturba a dinâmica linfocitária já em curso no organismo, uma n dinâmica que envolve milhares ou milhões de clones diferentes e só é vista como “específica” (dirigida ao antígeno) porque os testes montados para detectá-la e quantificá-la focalizam apenas esta parte do que acontece e negligenciam as manifestações “inespecíficas” do fenômeno. Mas estas outras manifestações podem ser e geralmente são muitas vezes mais intensas que as específicas. A ideia de “reações cruzadas” alega que houve uma imprecisão na resposta imune e a reação englobou um outro antígeno, diferente do antígeno específico. Não é a isto que me refiro. A atividade “inespecífica” vê o problema a partir do organismo e refeita a ideia de que o corpo obedece a comandos antigênicos. Mas não surgem os anticorpos desejados? — perguntarão. Sim, às vezes sim, como na covid-19 e isto justifica o método. Mas várias décadas de pesquisa milionária sobre uma vacina para o HIV (e muitas outras doenças) nos deixaram na estaca zero. Os anticorpos específicos surgem, mas não protegem. Precisamos de pesquisa básica. Está na hora de. Inverter a ordem histórica e explicar a imunidade pelo modo como os anticorpos existem no organismo, determinados por sua fisiologia.
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