Nelson Vaz
“Quando eu era menino, meu pai me levava ao Cineac Trianon, na Avenida Rio Branco, no Rio de Janeiro, um cinema dedicado a desenhos animados e pequenos documentários, cujo lema era um hospitaleiro: “O espetáculo começa quando você chega”. Realmente, como os filmes apresentados eram todos relativamente curtos, algo sempre começava, como se fosse sob medida para nossa chegada. Ali ficávamos por pouco mais de uma hora, quando então se repetia o que havíamos visto e sabíamos que era hora de ir. Mas a ideia de que nossa chegada governava o espetáculo, era ilusória.” (Vaz em 25/11/2006)
Anteontem à noite, sem que nós víssemos ou entendêssemos, um caminhão passou em nossa rua e arrancou o cabo que trazia o sinal de TV e e internet à nossa casa. Um desastre! Logo nestas horas televisivas de lives! Mas eis que a Cláudia havia contratado um outro serviço de internet que vem por um cabo de fibra ótica por um outro trajeto e escapou do caminhão! É como se nossa casa estivesse “protegida” e tivesse uma “resposta específica” ao problema do caminhão! Esta seria uma história de imunidade a caminhões muito altos.
Meninos e meninas, eu entendi: a palavra chave não é clasura, é continuidade, é conservação, e isto requer um processo conservador. Como disse Wittgenstein: “Se um leão falasse, a gente não entenderia.” Os imunologistas ainda falam o idioma da especificidade, dos anticorpos; e mais, acreditam que o organismo obedece e pode ser controlado de fora para dentro, como se fosse possível direcionar suas respostas conforme desejamos, com vacinas. Mas o organismo usa o idioma dos sistemas vivos e este idioma diz em cada ação: “eu mudo mas continuo; assim mesmo, eu me conservo”.
Maturana (2002) nos diz que a manutenção da autopoiese (“eu continuo!”) é uma “condição de existência” do ser vivo, fazer e manter-se a si mesmo é um processo ininterrupto. Assim como ininterrupta precisa também ser a adaptação, a congruência ao meio em que o organismo opera e o torna possível — uma segunda “condição de existência”, que diz a mesma coisa: “eu continuo, eu me conservo neste neio cambiante”. A palavra-chave é “continuidade” e conservação requer um processo conservador.
Um processo conservador não é uma ideia nova, não é nada que já não saibamos. Na Paris do século 19, Claude Bernard se opunha à ideia de que as doenças infecciosas eram causadas pelo contágio com germes específicos — a teoria dos germes de Pasteur (1878). Dizia Bernard que o corpo mantém constantes as propriedades de seu meio interno, dos líquidos que banham suas células e que, se esta constância do meio interno for mantida, o organismo não adoece mesmo contagiado por micróbios potencialmente patogênicos. Realmente, há enormes variações individuais na suscetibilidade a doenças infecciosas e adeptos de Bernard, como Petenkoffer na Alemanha, beberam culturas do micróbio do cólera isolados de casos mortais, e não adoeceram! Claude Bernard defendia o processo conservador do organismo (Noble, 2008).
Parece então evidente que este processo conservador requer referenciais —padrões, perfis, assinaturas estruturais — aos quais o organismo regressa quando perturbado; este não é um “conhecer”, é um determinismo estrutural (Maturana, 2002). Mudanças compensatórias na estrutura do organismo servem para restaurar um equilíbrio ameaçado: “aquilo que se conserva naquilo que muda”, como diz Jorge Mpodozis na frase que usamos como epígrafe em nosso pequeno livro (Vaz et al., 2011).
Cito duas linhas de pesquisa, entre outras, voltadas para a caracterização destes referenciais —padrões, perfis, assinaturas estruturais — na reatividade de imunoglobulinas naturais, isto é, as presentes em animais sadios não manipulados, que não passaram pelas mãos dos imunologistas:
Uma foi desenvolvida nos anos 1990, no laboratório de Antonio Coutinho, no Institute Pasteur, em Paris, por Alberto Nóbrega (hoje na UFRJ), Mathias Haury e Alf Grandien (Nóbrega et al., 1993) e consiste de uma forma modificada de immunoblotting, conhecida como Panama-blot.
Outra foi criada por Irun Cohen e colaboradores, em Israel, e consiste de análises de perfis de reatividade de anticorpos naturais com centenas de proteínas diferentes arrumadas por um braço robótico (um micro-array) em uma lamínula (Cohen, 2013). Há décadas, Cohen advoga a existência de um homúnculo imunológico (Cohen and Young, 1991).
São duas maneiras de investigar o processo conservador essencial à continuidade do organismo, que requer a existência de referenciais na estrutura, aos quais retornar durante as perturbações na harmonia do viver.
A “imunologia da paz” à qual me refiro em um vídeo de Luiz Andrade, também se refere a este processo conservador que precisa se tornar um objeto central de pesquisas em imunologia, embora sem abrir mão das reações específicas estudadas pelos imunologistas, mas como proposta de uma outra explicação.
Bibliografia
Cohen, I. R., & Young, D. B. (1991). Autoimmunity, microbial immunity and the immunological homunculus. Immunology Today, 12(4), 105-110.
Cohen, I. R. (2013). Autoantibody repertoires, natural biomarkers, and system controllers. Trends Immunol, 34(12), 620-625. doi:10.1016/j.it.2013.05.003
Maturana, H. (2002). Autopoiesis, structural coupling and cognition: a history of these and other notions in the biology of cognition. Cybernetics & Human Knowing, 9(3-4), 5-34.
Noble, D. (2008). Claude Bernard, the first systems biologist, and the future of physiology. Exp Physiol, 93(1), 16-26. doi:DOI: 10.1113/expphysiol.2007.038695
Nobrega, A., Haury, M., Grandien, A., Malanchere, E., Sundblad, A., & Coutinho, A. (1993). Global analysis of antibody repertoires. II. Evidence for specificity, self-selection and the immunological "homunculus" of antibodies in normal serum. Eur J Immunol, 23( 11), 2851-2859.
Pasteur, L. (1878). The germ theory and its application to medicine and surgery.
Comp. Rend. de l"acad. Sci., 86, 1037-1043.
Soderqvist, T. (2003). Science as autobiography. The troubled life of Niels Jerne.
New Haven: Yale University Press.
Vaz, N. (2006) Cineac Trianon
Em (061125)
Vaz, N. (2016) Imunologia da paz (video)
Em
Vaz , N. M., Mpodozis, J. M., Botelho, J. F., & Ramos, G. C. (2011). Onde está o organismo? - Derivas e outras histórias na Biologia e na Imunologia. Florianópolis: editora-UFSC.
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