Nelson Vaz
Os anticorpos constituem o princípio explicativo mais usado para entender a imunidade a doenças infecciosas. Mas, usualmente, princípios explicativos ocultam aquilo que supostamente explicam. São assim como conceitos sobre os quais se concordou, consensualmente, em interromper a busca por explicações, ou melhor, pelo mecanismos geradores do que se quer explicar. Dizer, por exemplo, que o DNA contém a informação genética necessária para gerar o organismo, faz do DNA um princípio explicativo e não ajuda muito a entender como o corpo é gerado.
O estudo dos anticorpos começou em 1890, com a caracterização das antitoxinas da difteria e do tétano (Behring and Kitasato, 1890), mas o envolvimento de linfócitos na imunidade só foi admitido por volta de 1950. Portanto os primeiros 60 anos de estudos na imunologia fluíram sem que se considerasse a participação de linfócitos, ou seja, sem considerar as células que são a. origem dos anticorpos. James Gowans, um dos cientistas mais importantes nesta área, escreveu um artigo sobre o longo desconhecimento sobre a importância dos linfócitos na atividade imunológica, e chamou esta omissão de uma “falha vergonhosa” (disgraceful gap) no conhecimento médico (Gowans, 1996).
Mas, de 1960 até hoje já se passaram outros 60 anos e a participação dos linfócitos na imunidade anti-infecciosa permanece obscura. A invenção de vacinas, por exemplo, que se tornou agudamente importante na covid-19, continua a ser feita por tentativa e erro, mais ou menos como fazia Pasteur em seu uso de “germes atenuados” — micróbios e vírus enfraquecidos no laboratório (Smith, 2012a). Kendal Smith (2012b) assim resume o entendimento atual:
O termo imunidade “adaptativa” geralmente é reservado para o tipo de imunidade que se ajusta para responder a um micróbio invasor, ou seja, ela se adapta. Um sinônimo que também foi usado é imunidade "adquirida", que afirma ser diferente de uma imunidade "inata" ou herdada. A imunidade adaptativa trás consigo a conotação de uma resposta aumentada quando se repete a exposição a um antígeno. A isso chamamos de memória imunológica. Hoje é reconhecido e bem aceito que os linfócitos são as células responsáveis pela imunidade adaptativa, e que os dois tipos de linfócitos, células B e células T, são participantes ativos no processo. O fenômeno da memória imunológica depende da especificidade do reconhecimento do antígeno, bem como da especificidade da resposta imunológica. Assim, a imunidade adaptativa explica porque a vacinação é eficaz na prevenção de doenças infecciosas, e portanto, é a essência da imunidade, definida como a isenção de uma dada doença. (Smith, 2012).
Em algumas doenças, , por exemplo, na difteria, a coincidência do aparecimento de anticorpos específicos no sangue circulante e da imunidade anti-infeciosa é muito clara e as anti-toxinas podem ser apontadas como verdadeiros antídotos, que são o substrato molecular da imunidade. Algo similar pode ser pensado em relação a várias infecções por vírus que fazem uma passagem pelo sangue (viremia) onde eles podem ser, similarmente, “neutralizados” por anticorpos que impedem sua ligação com moléculas da membrana celular que lhes servem como ancoradouros (“receptores”) necessários à sua entrada nas células. Na covid-19 se especula que anticorpos específicos para a espícula (spike protein) do vírus são neutralizantes, enquanto que anticorpos contra a nucleoproteína viral, por exemplo, não são; isto explicaria diferenças no poder protetor de anticorpos e representaria uma dificuldade a mais para a epidemiologia baseada em testes que detectam anticorpos anti-vírus, mas não especificam para qual de seus antígenos.
Mas são relativamente raras as doenças infecciosas nas quais toxinas ou vírus que fazem viremia podem ser apontadas como mecanismo da patogenicidade e, para esta maioria de doenças, não está absolutamente claro qual seria o papel de anticorpos, e também de linfócitos, na imuno-proteção. Não surpreende, portanto, que uma pesquisa recente da Lancet indique que uma alta taxa de pesquisas (94%) sobre novas vacinas, fracasse no estágio experimental (Gouglas et al. 2018). É relativamente fácil induzir a produção de anticorpos anti-vírus, mas raramente esta produção de anticorpos se acompanha de um aumento na imuno-proteção. A proteção passiva obtida pela transferência de soro sanguíneo contendo anticorpos específicos — soroterapia — que foi magnificamente vitoriosa em salvar a vida de crianças com difteria no final no século 19, foi testada experimentalmente em numerosas doenças, mas fracassou em quase todas elas. Por si mesmos, isoladamente, anticorpos não são protetores, exceto em algumas situações excepcionais, como na difteria no tétano, assim como anti-venenos nas picadas de cobras e escorpiões.
Configura-se então um situação que confunde o iniciante e embaraça o especialista. Como explicar a imunidade conferida pelas vacinas anti-infecciosas se não pela produção de reações específicas? A atribuição da proteção a linfócitos T enfrentaria objeções similares, ou seja, é fácil demonstrar a ativação de linfócitos T específicos para peptídeos derivados de um dado antígeno, mas é igualmente difícil apontar uma ligação entre este aumento e o aumento da imuno-proteção. Em resumo, sabemos ainda muito pouco sobre o mecanismo de ação das vacinas. Isto não diminui o reconhecimento do enorme benefício trazido à humanidade pela invenção de vacinas seguras e eficazes e, de maneira alguma constitui um argumento favorável ao movimento anti-vacinação. Mas aponta a fragilidade de nosso conhecimento atual e enfatiza necessidade premente de estimular e financiar a pesquisa básica em imunologia, além das tentativas empíricas de obter vacinas eficazes por tentativa e erro, como se faz atualmente. A previsão de que outras zoonoses com potencial pandêmico poderão ocorrer no futuro imediato torna esta necessidade ainda mais flagrante. É importante informar aos financiadores do trabalho científico sobre esta necessidade premente.
Gouglas, D., & al., e. (2018). Estimating the cost of vaccine development against epidemic
infectious diseases: a cost minimisation study. Lancet - Global Health, 6(12), E1386-E1396.
Gowans, J. L. (1996). The lymphocyte--a disgraceful gap in medical knowledge. Immunol Today, 17(6), 288-291. Retrieved from http://www.ncbi.nlm.nih.gov/entrez/query.fcgi?cmd=Retrieve&db=PubMed&dopt=Citation&list_uids=8962633
Smith, K. A. (2012). Toward a molecular understanding of adaptive immunity: a chronology, part I. Front Immunol, 3, 369. doi:10.3389/fimmu.2012.00369 (busque também partes II e III)
Smith, K. A. (2005). Wanted, an Anthrax vaccine: Dead or Alive? Med Immunol, 4(1), 5. doi:10.1186/1476-9433-4-5.
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