O título, o abstrato
Nelson Vaz
Neste reencontro com leitores do blog da SBI ofereço um texto que espero mereça ser relido, que faça o leitor reconsiderar o título e o abstrato, que lembre o poema de Olegário A. Silva:
Poema para ser lido de baixo para cima
Olegário A. Silva
o título
Volta para
um poeta não morre
por isso é separado dos versos
O título do poema é a casa cósmica do poeta
Título
No
pousa
e
douradas
bate suas asas
e imediatamente
encanta-se
ao pôr pé na terra
desce a escada de seus versos
o poeta nasce no infinito
os outros são degraus ou leitos compridos
o último verso de um poema é a terra do poeta.
Abstrato
Depois de 20 anos na UFF, nesta semana completei 36 anos como professor de imunologia na UFMG, 16 dos quais como aposentado; vivi como um imunologista. Tenho um diploma de médico, mas, como um imunologista, entendo quase nada de Medicina ou de Biologia. Resultados experimentais inesperáveis sobre a ingestão de antígenos no anos 1970 (a “tolerância oral”) e o encontro com neurobiólogos chilenos (Francisco Varela, Humberto Maturana e Jorge Mpodozis) me levaram a um modo de ver histórico-sistêmico. É histórico ao propor uma outra narrativa da sucessão de acontecimentos que trouxe os humanos até o presente e também pela análise de uma sequência de mudanças estruturais. É sistêmico ao valorizar a conservação de relações entre componentes (“partes”) que distinguimos em entidades como os seres vivos. Diferente da Física, que se preocupa com mudanças, a Biologia busca explicar os seres vivos, e nos seres vivos, a mudança é constitutiva. Se os seres vivos mudam continuamente de estrutura molecular (e celular), como podem eles conservar aquilo que se conserva? Como conservam invariante sua identidade de classe? Como podem uma ameba ou um gato continuar a ser o que são? Como pode o “sistema imune” conservar padrões de atividade, e mesmo regenera-los se os linfócitos forem destruídos experimentalmente? Uma visão conservadora.
Chamo este resumo de abstrato não para ser pernóstico, mas para enfatizar o abstrato. O que se conserva nos seres vivos são relações entre seus componentes e estas relações não estão nos componentes, mas sim entre eles: são abstratas. Como aquilo que escrevo e aquilo que o leitor entende não está em mim, nem nele.
Desde que o ICB-UFMG me honrou com o título de professor emérito, mesmo aposentado pude voltar a dar aulas e organizei cursos para um pequeno número de alunos, que chamei “Para entender a imunologia”. Em uma sequência de 15 encontros proponho que para entender a imunologia é preciso entender o organismo em seu viver. Mas o que seria “explicar” o organismo? Isto parece presunçoso. Explicar nosso próprio entendimento? Quando concluiremos que já explicamos o que nos propusemos a explicar? Como sabemos que já sabemos o que sabemos? Que critérios de validade aceitaremos para nossa explicação? “Para entender a imunologia” é preciso entender a origem de suas ideias, mas, para isso, é preciso entender a imunologia. E o que fazemos como observadores.
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