Quer que eu pense?
21 de janeiro de 2025
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*Publicado no SBlogI originalmente em 28 de abril de 2016

 

Alguns fragmentos de minha memória sobre Lain Carlos Pontes de Carvalho
Cientista Brasileiro da Fiocruz e amigo leal e zeloso

 

Sem agenda para uma reunião, o Diretor do IOC deixou para confirmar, na noite de sexta-feira 15 de abril de 2016, um eventual almoço de trabalho, no sábado 16. Nesse dia, entretanto, me escreveu:

- Não consigo almoçar com você, nem mesmo conversar, pois choraremos feito dois bezerros desmamados.

Não entendi de imediato, mas abaixo vinha um texto, bonito, quase longo para um SMS, onde noticiava que “nosso Lain virou estrela”. Decido criar o tempo para prestar ao amigo uma homenagem pessoal.

O relógio marcava uma das primeiras horas de madru- gada e eu não entendia direito o nome da pessoa que a recepcionista, nem francesa nem brasileira, da Casa do Brasil, (Cidade Universitária de Paris), anunciava, pelo interfone, que estava subindo para falar comigo, naquele dia do feriado de Páscoa, no longínquo 1980.

Doutorando em Paris, eu estava, com a proximidade do nascimento de minha segunda filha, sozinho em casa. Abro a porta, descalço e sonolento, e vejo, primeiro o tórax, depois o facies confuso, sempre tímido, e simpático do longilíneo Lain, que eu ainda não conhecia.

Porque ainda não desistira da ideia de cursar simul- taneamente o Doutorado e a especialização em Alergia e Imunologia Clínica, eu visitara, em uma de minhas viagens ao Brasil, o pai de Lain, Lain Pontes de Carvalho (sem o Carlos), então Presidente da Sociedade Brasileira de Alergologia e Imunopatologia, em sua Clínica em Vila Isabel. Também enorme, Dr. Lain recebeu-me acolhedor e informativo discorrendo sobre a Comunidade de Profissionais Cariocas e Brasileiros da Área. Disse-me que tinha um filho também em Doutoramento no exterior (com Ivan Roitt, no Middlesex General Hospital, em Londres) e me deu as coordenadas dele. Escrevi a Lain tão logo cheguei de volta em Paris e esperei pela resposta. Não lembro direito quando nem se a recebi, mas após (ou em vez d)a resposta, Lain veio passar a Páscoa do ano seguinte em Paris, sem reservar hotel e, depois de tentar várias “biroscas” passíveis de serem pagas com uma bolsa do CNPq, todas lotadas, desistiu e dirigiu-se à minha casa, um “deux pièces”1 na Cité Internationale...

- Cláudio, eu sou o Lain... cheguei há algumas horas e não consigo um hotel aqui em Paris... posso tentar de novo a partir de amanhã de manhã... ele tentava se explicar... Interrompi-o, divertido com aquela situação.

- Por favor, entre, Lain.

Comecei a esvaziar, na mesa, itens retirados da geladeira, que doutorandos ostentam orgulhosos em suas residências universitárias estrangeiras... Lain sacava da mochila, conforme eu ia servindo à mesa... uma mini garrafa de vinho, alguns mini-queijinhos, talvez uma mini-brioche ou um mini-croissant (resquícios da viagem Londres-Paris de trem) que me oferecia, na tentativa desesperada e desoladora de se fazer perdoar pela invasão e falta de cerimônia que acreditava me impingir àquela hora da madrugada.

Passeamos em Paris juntos no dia seguinte... conversamos bastante sobre imunologia, nossas famílias, mulheres e futuros, e despedimo-nos fraternos, um ou dois dias depois. Ficamos amigos com o tempo...

Havia, na época, outros doutorandos brasileiros na Europa: Ferruccio Santoro, Dirceu Greco, Jorge Kalil... Wilson Savino, este em pós-doc. Encontrávamo-nos amiúde em Congressos. O Mundial de Imunologia ocorrido em Paris 1981, fora para nós uma festa, no sentido prenunciado por Ernest Hemingway2. Cruzávamos como o sereno Lain, sempre com uma mochila – ou algo parecido – nos ombros, o tempo inteiro; humor fino, perguntas inteligentes, tiradas geniais...

Acho que Lain foi o primeiro a me falar da Fiocruz, quando analisávamos, juntos, nossas perspectivas após o doutoramento no exterior, onde um tal de Galvão (Bernardo Galvão-Castro Filho), patologista baiano que se doutorara recentemente na Suiça, estava montando, no Instituto Oswaldo Cruz (IOC), um Departamento de Imunologia, com vocação para doenças parasitárias.

- e como é esse Galvão, Lain?

- Achei ele a antítese do picareta...

Compreendi que não podia ser melhor recomendação. Galvão se orgulha do elogio até hoje. Foi, então, que aqui que vim bater e me estabelecer...

Antes de Lain voltar ao Brasil, encontramo-nos várias vezes. Lembro de uma delas em um Congresso Luso- Brasileiro de Alergologia Clínica, em Portugal. Os Pais de Lain também estavam lá. Uma alemã tomava banhos de sol e piscina, topless e em só um string... literally... (considerem que era 1981... 35 anos atrás), no hotel cinco estrelas3 na beira da praia de Alvor. Lain, em sua fleuma Londrino- Fluminense, mudava menos de humor que Francisque Leynadier, amigo Professor Titular da Universidade Pierre et Marie no Hôpital Rotschild, que, também no Congresso e do mesmo hotel, ligava para o meu quarto cedo:

- Tarzan est déjà à la piscine, “Clodiô”. On y va!

Lembro-me de, deitado nas areias da praia, discutir com Lain a redação dos resultados de um trabalho que fizéramos juntos, por sugestão e influência de seus conhecimentos em tireoidite auto-imune. Lain estudava (com Roitt e George Wick) a tireoidite natural de galinhas gordas e conhecia o modelo experimental da doença induzida em camundongos. Misturamos, então, o auto-antígeno tiroglobulina (alvo de seus estudos)5 com a malária experimental murina (um dos meus) para averiguar as bases fisiopatogênicas da auto-imunidade não patológica que acompanha a malária. Obtivemos resultados espetaculares; isso, mesmo, não menos... Eles permearam racionais e conclusões contidas em minhas tese e várias publicações6, da época e posteriores. No dia em que saíram os resultados, Lain ligou de Londres a Paris – isso custava ouro na época – para dizer:

- Há muito tempo não via resultados tão bonitos saindo do contador gama7...

Vibramos juntos...

Lain ia a Paris de vez em quando e lembro-me perfei- tamente de tê-lo levado, em uma delas, ao complexo comercial do Forum des Halles, onde ia comprar bijuterias com turquesas para a minha mulhe e de Lain se empolgando e escolhendo também para Neuza, de quem começava a se enamorar. Alguém consegue imaginar a cena do Lain escolhendo colarzinhos ou pulseirinhas de turquesa para a amada? Em uma das vezes em que fui a Londres, discutir (com JHL Playfair, da equipe de Roitt) os resultados que obtivemos, Lain me levou ao seu grupo e clube de squash. O esporte é quase violento, requer bastante rapidez nos deslocamentos, além de destreza com a pequena raquete, e ele praticava bastante bem, apesar de seu tamanho avanta- jado. Aderi ao esporte por algum tempo, graças ao Lain.

Eu em Paris e Lain em Londres recebemos algumas vezes a visita de nossos pais que, obviamente, aproveitavam a viagem a Europa para passear um pouco mais. Foi assim que Lain recebeu os meus em Londres e, conhecendo o meu velho pai, sei que não deixou barato para Lain, que deve ter tido que pajear e paparicar um casal de “velhos” (meus cálculos apontam para os 53 anos de papai em 1981, uma década mais jovem do que a idade que tenho agora) que não falavam inglês nem conheciam a cidade. Foi assim também que recebi a tarefa de cuidar do Dr. Lain e D. Lúcia quando foram a Paris. Até onde lembro, não falavam Francês, mas posso testemunhar que a doce D. Lúcia era do tipo que não pedia nada a ninguém. Já o Dr. Lain, versão médica de meu pai, tinha mais clareza de que cabia, sim, ao garoto de 29 anos cuidar deles, o que tentei fazer ao meu melhor. Lembro-me de me ter chamado certa vez no hotel, em St Michel, porque uma tomada não estava funcionando. Isso depois de me ter pedido para ir buscar e guardar em minha geladeira, um molho tucupi com o qual, certamente, D Lucia ia temperar o pato que cozinharia em Londres para o Lain... Acabada a visita, coube a mim acompanhá-los ao aeroporto o que fiz em meu Fusquinha velho. Ele não andava muito bem, nem rápido... e eles acabaram perdendo o vôo para Londres. Que droga ! Eu ainda não tinha o traquejo que qualquer garoto, hoje, escolado com umas viagenzinhas, tem e sabe que Paris-Londres é quase Ponte-Aérea e que eles pegariam o vôo seguinte. Eu, de certo, achava que teriam que comprar outra passagem e me desculpei tanto quanto consegui antes de voltar para casa envergonhado, pensando no que meu pai diria disso...

Lain e eu sobrevivemos uns aos pais do outro e nossas amizade e história cresciam...

Cabe narrar outro aspecto interessante dessa sucessão cronológica de encontros de pais e filhos. Meu irmão caçula se preparava para o vestibular em Medicina na UFRJ no RJ e meus pais resolveram que seria bom ele passar seis meses na Inglaterra antes de iniciar a faculdade. Queriam contatos de pessoas que conhecessem o sistema e os programas de intercâmbio naquele País... Lógico que perguntaram ao Lain, que conhecia, sim, uma menina de menos de 20 anos, que fizera em Cambridge o seu intercâmbio. Estávamos a dias de meu aniversário em 1981, e meu pai, em minha casa - já na Porte d’Ivry, em Paris, perguntou-me se podia chamar essa jovem e seu namorado, que estavam na cidade, para se informar sobre as diferentes etapas da empreitada. Vieram... Monica Reinach era uma menininha doce e graciosa, o namorado era um camarada mais velho, barba grande, cabelos revoltos, sandálias de pneu... um casal improvável. Ele, também imunologista, especialista em timo... estudava só isso (Lain já havia me falado dele). Nossa mãe, eu pensei... Sabem quem era, não sabem...? Pois é, foi por causa de meu pai, de meu irmão caçula, do Lain e da Mônica que recebi e conheci o Wilson Savino em minha residência Parisiense, em 1981.

Lain concluiu antes o Doutoramento e foi contratado para a Fiocruz por José Rodrigues Coura, então Diretor do IOC e Vice-Presidente de Pesquisa da Fiocruz, a pedido de Galvão.

Em uma de minhas vindas ao Brasil a trabalho, em 1983, fui visitar o Lain, já jovem pesquisador do staff do Departamento de Imunologia (Dimuno) do IOC, em sua casa na Usina para conversarmos sobre as perspectivas no IOC. Galvão já havia se declarado interessado em contratar um especialista em Imunologia da Malária e eu queria saber que parte dessa intenção era possibilidade real. Lain me recebeu e contou, objetivo e realista, como era o IOC de 1983, mas aqui priorizo o relato da memória sobre meu adorado pai, falecido em 2013.

Ele estacionou em frente à casa do Lain e, como o local era perigoso, fechou e ficou do lado de fora do carro e me disse:

- Leve o tempo que precisar. Não se preocupe comigo. Eu estarei aqui esperando você...

Demorei muito, mas essa frase, que faz parte do repertório daquelas que só pais dizem aos filhos, integra uma lista de várias do meu de que jamais esquecerei... Olhando agora para trás, dou-me conta de que devo ao Lain também essa lembrança...

Novamente eu estava de volta ao meu apartamento em Paris onde recebo um dia uma ligação de Savino:

- Você está sentado? Senta! Os pais de Lain acabam de falecer em um acidente de carro...

Perdi a voz. Sentei-me imediatamente e escrevi a Lain uma carta afetuosa falando da minha grande estima por ele; de meu primeiro encontro com o seu pai (na Clínica Pontes de Carvalho) e com sua mãe (D. Lúcia, acho que em Alvor). Falei-lhe de minha honra por tê-los recebido em Paris e da gratidão e conforto em tê-lo visto receber os meus em Londres. Falei-lhe de carinho, cumplicidade e de meu sentido pesar por assisti-los partir de forma trágica e precoce. Não tive resposta...

Já no Rio, colega de Lain no Dimuno, recordo-me de quando convidou todos os colegas do Departamento para um almoço de fim de semana em sua casa em Niterói. Ficamos na beira da piscina conversando e saboreando, acho que, um churrasco. Eu aproveitava para ensinar minha primogênita mergulhar com  o mínimo de resistência da água. Em um dos mergulhos, deslizou com seu corpo magrinho de sete ou oito anos de idade de maneira tão fluida e penetrante pela água que foi direto ao fundo, onde bateu um dentinho da frente. Quebrou uma lasquinha pequena, mas foi o suficiente para que chorasse sentida aquela perda horrorosa, trágica e inadmissível para uma menininha...

Para acalmá-la, fiz Lain prometer a ela que esvaziaria a piscina inteira e procuraria nos filtros a lasquinha que faltava... Lain também se empenhava em acalmá-la:

Mas isso aconteceu porque o seu mergulho foi perfeito! de atleta... sem nenhuma resistência da água... senão você nunca chegaria no fundo da piscina.

Lain era um fofo; além de bonito, era delicado e encantador... Uma vez Antoniana Krettli me contou:

- Imagina, Cláudio, que minha filha Aline gosta tanto do Lain que é o único nome que sabe escrever além do dela própria.

Ao que argumentei racional e enciumado:

- Lógico, Antoniana, são as mesmas letras...

Minha filha se acalmava aos pouquinhos, fascinada diante daquele homenzarrão atencioso, mas só apazigou-se de verdade quando a levamos à dentista da família, no primeiro dia possível após o incidente. Ela restaurou o pedacinho que faltava em um trabalho artesão perfeito. Esqueci rapidamente do ocorrido, mas só por uns dias, até que Lain chegasse no Laboratório com um chumacinho de algodão envolvendo uma mini-lasca de dente, que me apresentou diligente:

-Encontrei.. acho que é isso aqui.

Lain era, mesmo, zeloso e cuidadoso com os amigos. O Dimuno ficou até o ano 2000 no Pavilhão Carlos Chagas e Galvão foi um dos primeiros a organizá-lo em Laboratórios. Antes disso o Departamento era estruturado fisicamente em Salas e Lain e eu dividíamos a Sala 11 com nossos estudantes. Um dia chegamos na porta da Sala juntos e Lain me disse:

Obrigado por aquela carta, Cláudio. Ela me fez muito bem. Eu nunca a respondi porque não conseguia falar sobre o assunto. Desculpe-me...

São, de fato, muitas lembranças, carinhosas e pitorescas. Mas há uma que gosto mais do que todas: uma que revela o Lain pensador... o cientista que era, creio que, desde sempre. Conto essa aos alunos e a contei em muitas aulas, fóruns e entrevistas nos quais fui levado a falar do que seja um cientista e a sua função. Creio que ela caracteriza mais do que qualquer outra explicação nossos metier e papel.

Conversávamos certa vez, Lain e eu. Íamos listando os diferentes aspectos de uma questão, acho que diferentes etapas de um mecanismo hipotético de patogenia (nenhuma lembrança de qual), somando os argumentos em uma lógica construtiva. Se tal antígeno tem propriedades mitogênicas, tais células devem estar ativadas; se elas estiverem ativadas, tal mecanismo de regulação deve ser mobilizado... até que eu acrescentasse no final: e se assim for também tal resposta deve se manifestar... ele parou, pensou um pouco e respondeu:

- Eu não tinha pensado nisso. Você quer que eu pense? Lain deixava claro que o trabalho que era pago para fazer era “pensar” (não é o assunto que importa. Aqui reside a diferença entre as pós-graduações lato e sricto sensu. Falamos sobre isso no último CD do IOC, mas isso é outra história...) e que não iria despender o esforço de fazê-lo consequentemente se não fosse necessário.

Até onde sei, Lain sonhava, quando criança, em ser um escritor de ficção científica. A mim parece um sonho possível para um homem que usou seus cérebro e inteligência para pensar o mundo e as questões que afetam a vida e a saúde de nossa e de outras espécies. Considero que ele fez isso com grande competência, magno brilho e vultosa criatividade. Como colocou nisso a fé que tinha na ciência e amor que tinha pelos homens e pela vida, creio que fez também com o coração, o que me leva à crer que o fez com poesia.

Acho que cabe, sim, dizer que Lain virou estrela... é o que acontece com os que tem luz própria em vida...

Cláudio Tadeu Daniel-Ribeiro

amigo e admirador Rio, 24 de abril de 2016

 

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