Tolerância e tolerância a doenças
24 de junho de 2020
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Nelson Vaz
Cada vez mais frequentemente, o termo “tolerância a doenças” é usado em discussões sobre o adoecer e é importante distinguir seu significado do termo “tolerância específica ”, que foi introduzido na imunologia (Burnet and Fenner, 1949; Billinhgham, Brent and Medawar, 1953) significando uma “não-reatividade específica” — uma espécie de amnésia imunológica, o oposto funcional da “memória” imunológica. Este fenômeno mais conhecido na imunologia — a tolerância entendida como não-reatividade — pode participar da “tolerância a doenças”, mas não significa a mesma coisa. Enquanto a “resistência” a doenças (que inclui a imunidade específica) implica a eliminação de um agente infeccioso e mecanismos voltados a isto, a “tolerância a doenças” envolve mecanismos que assegurem a sobrevivência do organismo a despeito de sua invasão por agentes infecciosos, e este mecanismos não estão voltados para a eliminação do invasor.
Lars Raberg argumenta incisivamente contra a ideia de substituir o termo “tolerância a doenças” por um outro, porque ele foi usado primeiro estudos de plantas e, naquela área (plant sciences), o termo está bem definido e encontra vários empregos adequados (Raberg, 2009). Por sua vez, o estudo da imunidade em animais é bem menos homogêneo. Melhor seria se os imunologistas modificassem sua terminologia.
O termo “tolerância” como “não-reatividade específica” foi usado inicialmente em referência à auto-tolerância (Burnet and Fenner, 1949), isto é, à ideia de que o corpo anula a reatividade imunológica a seus próprios componentes, uma ideia central na teoria de seleção clonal (Burnet, 1959) que domina a imunologia há cerca de 60 anos. Dois primeiros reparos são importantes na qualificação desta “não-reatividade específica”.
Além de obsoleto, o conceito de “não-reatividade específica” é falso, tanto em relação à auto-reatividade, isto é, linfócitos e imunoglobulinas efetivamente reagem entre si e com outros componentes do próprio corpo (Coutinho, Kazatckkine and Avrameas, 1995), quanto em relação à alo-reatividade, isto é, animais tornados tolerantes a alo-transplantes por tratamentos neonatais como no artigo clássico de Billinhgham, Brent and Medawar(1953). Mas, como demonstrado mais tarde, estes animais tolerantes possuem abundantes linfócitos alo-reativos ativados, que reagem com células alogênicas (Bandeira et al., 1989). O argumento sobre a tolerância que fundamentou a teoria de seleção clonal, era falso.
Em uma área correlata de pesquisa denominada “tolerância oral” ou “tolerância das mucosas”, um fenômeno no qual, por exemplo, a ingestão de uma proteína como alimento resulta em uma redução importante da reatividade específica à mesma, o que se estabelece não é propriamente uma inibição da reatividade específica, como parece ser. Na tolerância oral, ocorre um travamento da reatividade específica em patamares de reação inversamente proporcionais à dose da proteína ingerida no estabelecimento da tolerância (Verdolin et al., 2001). A ideia de que a “tolerância oral” é um processo passivo resultante da eliminação de clones de linfócitos específicos foi contradita de várias maneiras (Castro Junior et al., 2010). Há 40 anos mostramos que a tolerância oral pode ser transferida de um animal a outro por linfócitos T (Richman et al., 1978). Além disso, a exposição de animais tolerantes a mitogênios policlonais de linfócitos B, resulta no surgimento de anticorpos específicos no soro (Chiller and Weigle, 1973; Titus and Chiller, 1981). Linfócitos específicos estão presentes em animais tolerantes.
Esta constatação, de que a tolerância oculta um tipo de atividade, é um aspecto particular de um problema muito mais geral. Segundo a teoria clonal, os linfócitos envolvidos nas “respostas imunes específicas” estão inertes antes do “estímulo” antigênico, ou seja, é o estímulo que promove as expansões clonais, e esta ativação não ocorreria em sua ausência. Mas a atividade imunológica é um fenômeno natural, espontâneo que se desenvolve cedo no organismo vertebrado, e é mantido mesmo na ausência completa de estímulos antigênicos (Haury et al., 1997).
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O termo “tolerância a doenças”, ou simplesmente “tolerância”, pode ser mantido sem problemas na imunologia se abdicarmos ao significado usual de tolerância específica, como uma uma não-reatividade —que, afinal, é enganoso porque se refere a algo que nunca existiu. Se os diversos níveis de reatividade são especificados (ditados orientados) por relações entre a totalidade de linfócitos do organismo, como parece ser o caso, então, o lado imunológico da “tolerância a doenças” pode ser análogo aos mecanismos mais ligados ao “viver e deixar viver’ que orienta os aspectos não-imunológicos do problema.
Na realidade a “imunidade” classicamente concebida como eliminadora de invasores do corpo, não é sequer dirigida a micróbios e vírus, mas sim se refere a “doenças” infecciosas e a enorme maioria das interações com micróbios, vírus e parasitas se dá em organismos sadios. Em seu viver sadio, o organismo não ignora o enorme conjunto de contatos com agentes infecciosos de sua microbiota nativa (e seu viroma) embora isto não resulte respostas imunes progressivas. O organismo não tem “memória” imunológica de seus alimentos nem de sua microbiota nativa, mas está longe de ignora-los. Dizer que ele é “tolerante” a estes materiais, significando que ela reage de maneira equilibrada aos mesmos, é um conceito bem próximo ao que se entende pele “viver e deixar viver” estudado pela “tolerância a doenças”.
Bibliografia.
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Nelson Vaz
Colunista Colaborador
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