Nelson Vaz
Na covid-19 o palco foi ocupado pela vacinologia das indústrias farmacêuticas. Neste cenário, a imunologia básica é um personagem menor relegado à sombra, vestindo uma fantasia rasgada. Ela não pode sequer discutir o receio de que vacinas, eventualmente, aumentem a severidade das doenças, porque teme, justificadamente, o movimento anti-vacinas da Europa e dos Estados Unidos. Para Wittgenstein, a renovação da filosofia tinha que começar pela linguagem. Em minha modesta opinião, o mesmo se aplica à imunologia. Mas não me refiro à terminologia, mas si a um novo modo de ver, novas coordenações de conduta, novos métodos, como a identificação de padrões na atividade imunológica, como nas placas de Elisa com múltiplos antígenos de Avrameas (Mirilas et al, 1999); os immunoblots de Nóbrega et al. (2002); e os protein-arrays de Cohen (2013).
Dois livros que li recentemente me surpreenderam com ótimos relatos da história da imunologia nos Estados Unidos (Barry, 2020) e na Alemanha (Goetz, 2014). Ambos se referem a um período que vai da segunda metade do século XIX à primeira metade do século vinte. Perdemos de vista as condições de vida nas cidades daquela época. Até a metade do século dezenove, o adoecer era associado a maus cheiros e pela descrição das condições sanitárias das cidades é fácil entender porque. O “grande fedor” do verão de 1858 em Londres, quando o Tâmisa se tornou insuportável pela carga de esgotos que recebia, levou à reforma urgente do planejamento da cidade (Ashton, 2017). Paris passou por dificuldades semelhantes. Isto coincidiu com a proposta da “teoria dos germes” da fermentação, por Pasteur. Dubos (1974) explica Pasteur propôs a “teoria dos germes” em seu primeiro artigo sobre a Biologia:
“Em seu primeiro artigo biológico, publicado em 1857, aos 35 anos, ele corajosamente propôs o que chamou de Teoria dos Germes da Fermentação - ou seja, propunha que cada tipo de fermentação é causada por um tipo específico de micróbios. No mesmo trabalho preliminar ele sugeriu, sem qualquer evidência, que essa teoria poderia ser generalizada, e ousadamente, anunciou uma etiologia microbiana das doenças. Eventualmente, esta doutrina da etiologia específica o levou à prática de vacinações específicas.” (Dubos, 1974)
Estas observações levaram Joseph Lister, na Inglaterra, a adotar assepsia de feridas cirúrgicas por sprays de fenol (creolina); antes disto a mortalidade por infecção hospitalar era de 60-70%. Na mesma época, na Alemanha, Koch estudava o papel de micróbios na supuração de feridas traumáticas (Goetz, 2014). Em 1880, outro verão muito quente e outro grande fedor, já foram enfrentados com o dito: “Nem tudo o que fede, mata; e nem tudo o que mata, fede!” — um reconhecimento do papel de micróbios nas infecções; o triunfo da teoria dos germes.
A presença de micróbios em doenças infecciosas foi assinalada muito antes da teoria dos germes, mas isto poderia ser devida uma mera correlação (micróbios como efeitos do adoecer, como na putrefação) e não provava que micróbios causavam as doenças. Um grande passo a favor de uma etiologia específica para cada doença foi dado por Robert Koch, com o enunciado de seus 4 “postulados”, que conferia um status científico a suas observações sobre o antraz (Goetz, 2014).
Foi também na Alemanha que Ehrlich, Behring e Kitasato, em experimentos com as toxinas da difteria e do tétano, chegaram a caracterizar o que hoje chamamos de anticorpos específicos. Ao mesmo tempo que foi um enorme sucesso de tradução de dados experimentais para a prática da medicina, a soroterapia da difteria cristalizou uma ideia ao mesmo tempo clara e equivocada. Gerou-se a crença de que as doenças são causadas por venenos (toxinas) secretadas por micróbios e que a cura depende da fabricação de antídotos sob medida pelo organismo — os anticorpos. Pasteur havia sugerido que é possível inventar vacinas para todas as doenças infecciosas, e surgiu a crença de que e que as vacinas funcionam pelo aumento da produção de anticorpos. Nada disso é exatamente assim, mas esta é a maneira pela qual o público e, pior, os financiadores da ciência e dos donos das indústrias farmacêuticas entendem a imuno-proteção.
Bibliografia
Ashton, R. (2017). One hor summer. Dickens, Darwin, Disraeli, and the Great Stink of 1858. New Haven: Yale Universty Press.
Barry, J. M. (2004) The Great influenza. The Epic Story of the Deadliest Plague in History. 2004. New York: Viking
Barry, J., M. (2020). A grande gripe: A história da gripe espanhola; a opandemia mais mortal de todos os tempos. São Paulo: editora: Intrínseca.
Cohen, I. R. (2013). Autoantibody repertoires, natural biomarkers, and system controllers. Trends Immunol, 34(12), 620-625. doi:10.1016/j.it.2013.05.003
Dubos, R. (1960, 1950). Pasteur. Free Lance of Science.
New York: Da Capo Press.
Goetz, T. (1968). The remedy : Robert Koch, Arthur Conan Doyle, and the quest to cure tuberculosis”. New York: Penguin.
Mirilas, P., Fesel, C., Guilbert, B., Beratis, N. G., & Avrameas, S. (1999). Natural antibodies in childhood: development, individual stability, and injury effect indicate a contribution to immune memory. J Clin Immunol, 19(2), 109-115.
Nobrega, A., Stransky, B., Nicolas, N., & Coutinho, A. (2002). Regeneration of natural antibody repertoire after massive ablation of lymphoid system: robust selection mechanisms preserve antigen binding specificities. J Immunol, 169(6), 2971-2978.
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