Um fedor do passado
15 de outubro de 2020
COMPARTILHAR Facebook Twiter Google Plus

Nelson Vaz

Na covid-19 o palco foi ocupado pela vacinologia das indústrias farmacêuticas. Neste cenário, a imunologia básica é um personagem menor relegado à sombra, vestindo uma fantasia rasgada. Ela não pode sequer discutir o receio de que vacinas, eventualmente, aumentem a severidade das doenças, porque teme, justificadamente, o movimento anti-vacinas da Europa e dos Estados Unidos. Para Wittgenstein, a renovação da filosofia tinha que começar pela linguagem. Em minha modesta opinião, o mesmo se aplica à imunologia. Mas não me refiro à terminologia, mas si a um novo modo de ver, novas coordenações de conduta, novos métodos, como a identificação de padrões na atividade imunológica, como nas placas de Elisa com múltiplos antígenos de Avrameas (Mirilas et al, 1999); os immunoblots de Nóbrega et al. (2002); e os protein-arrays de Cohen (2013).

Dois livros que li recentemente me surpreenderam com ótimos relatos da história da imunologia nos Estados Unidos (Barry, 2020) e na Alemanha (Goetz, 2014). Ambos se referem a um período que vai da segunda metade do século XIX à primeira metade do século vinte. Perdemos de vista as condições de vida nas cidades daquela época. Até a metade do século dezenove, o adoecer era associado a maus cheiros e pela descrição das condições sanitárias das cidades é fácil entender porque. O “grande fedor” do verão de 1858 em Londres, quando o Tâmisa se tornou insuportável pela carga de esgotos que recebia, levou à reforma urgente do planejamento da cidade (Ashton, 2017). Paris passou por dificuldades semelhantes. Isto coincidiu com a proposta da “teoria dos germes” da fermentação, por Pasteur. Dubos (1974) explica Pasteur propôs a “teoria dos germes” em seu primeiro artigo sobre a Biologia:

“Em seu primeiro artigo biológico, publicado em 1857, aos 35 anos, ele corajosamente propôs o que chamou de Teoria dos Germes da Fermentação - ou seja, propunha que cada tipo de fermentação é causada por um tipo específico de micróbios. No mesmo trabalho preliminar ele sugeriu, sem qualquer evidência,  que essa teoria poderia ser generalizada, e ousadamente, anunciou uma etiologia microbiana das doenças. Eventualmente, esta doutrina da etiologia específica o levou à prática de vacinações específicas.” (Dubos, 1974)

Estas observações levaram Joseph Lister, na Inglaterra, a adotar assepsia de feridas cirúrgicas por sprays de fenol (creolina); antes disto a mortalidade por infecção hospitalar era de 60-70%. Na mesma época, na Alemanha, Koch estudava o papel de micróbios na supuração de feridas traumáticas (Goetz, 2014). Em 1880, outro verão muito quente e outro grande fedor, já foram enfrentados com o dito: “Nem tudo o que fede, mata; e nem tudo o que mata, fede!” — um reconhecimento do papel de micróbios nas infecções; o triunfo da teoria dos germes.

A presença de micróbios em doenças infecciosas foi assinalada muito antes da teoria dos germes, mas isto poderia ser devida uma mera correlação (micróbios como efeitos do adoecer, como na putrefação) e não provava que micróbios causavam as doenças. Um grande passo a favor de uma etiologia específica para cada doença foi dado por Robert Koch, com o enunciado de seus 4 “postulados”, que conferia um status científico a suas observações sobre o antraz (Goetz, 2014).

Foi também na Alemanha que Ehrlich, Behring e Kitasato, em experimentos com as toxinas da difteria e do tétano, chegaram a caracterizar o que hoje chamamos de anticorpos específicos. Ao mesmo tempo que foi um enorme sucesso de tradução de dados experimentais para a prática da medicina, a soroterapia da difteria cristalizou uma ideia ao mesmo tempo clara e equivocada. Gerou-se a crença de que as doenças são causadas por venenos (toxinas) secretadas por micróbios e que a cura depende da fabricação de antídotos sob medida pelo organismo — os anticorpos. Pasteur havia sugerido que é possível inventar vacinas para todas as doenças infecciosas, e surgiu a crença de que e que as vacinas funcionam pelo aumento da produção de anticorpos. Nada disso é exatamente assim, mas esta é a maneira pela qual o público e, pior, os financiadores da ciência e dos donos das indústrias farmacêuticas entendem a imuno-proteção.

Bibliografia

Ashton, R. (2017). One hor summer. Dickens, Darwin, Disraeli, and the Great Stink of 1858. New Haven: Yale Universty Press.

Barry, J. M. (2004) The Great influenza. The Epic Story of the Deadliest Plague in History. 2004. New York: Viking

Barry, J., M. (2020). A grande gripe: A história da gripe espanhola; a opandemia mais mortal de todos os tempos. São Paulo: editora: Intrínseca.

Cohen, I. R. (2013). Autoantibody repertoires, natural biomarkers, and system controllers. Trends Immunol, 34(12), 620-625. doi:10.1016/j.it.2013.05.003

Dubos, R. (1960, 1950). Pasteur. Free Lance of Science.

New York: Da Capo Press.

Goetz, T. (1968). The remedy : Robert Koch, Arthur Conan Doyle, and the quest to cure tuberculosis”. New York: Penguin.

Mirilas, P., Fesel, C., Guilbert, B., Beratis, N. G., & Avrameas, S. (1999). Natural antibodies in childhood: development, individual stability, and injury effect indicate a contribution to immune memory. J Clin Immunol, 19(2), 109-115.

Nobrega, A., Stransky, B., Nicolas, N., & Coutinho, A. (2002). Regeneration of natural antibody repertoire after massive ablation of lymphoid system: robust selection mechanisms preserve antigen binding specificities. J Immunol, 169(6), 2971-2978.

PUBLICADO POR
Nelson Vaz
Colunista Colaborador
ver todos os artigos desse colunista >
OUTROS SBLOGI
O DNA mitocondrial liberado pelas células tumorais senescentes potencializa a imunossupressão das células mieloides através da via do cGAS-STING
SBI Comunicação Vaz
29 de agosto de 2025
Infecções virais respiratórias podem despertar células de câncer de mama dormentes no pulmão
SBI Comunicação Vaz
29 de agosto de 2025
Estresse crônico promove elevada permeabilidade intestinal e induz a produção de IL-22 que contraregula a ansiedade via neurônios
SBI Comunicação Vaz
29 de agosto de 2025