Nem imune, nem tolerante: uma outra coisa (parte 1)
14 de maio de 2020
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Esta é a primeira de duas partes onde contesto o significado e qualifico termos básicos  da imunologia, como imunidade, vacina, anticorpo e a tolerância
# Os poetas, com sua soltura dizem o que a gente quer dizer em poucas palavras. Com ajuda de Manoel de Barros, aviso que:

eu sou o medo da lucidez

choveu na palavra onde eu estava

-x-

As palavras-chave da imunologia são: imunidade, vacina e anticorpo. No meu entendimento, estas palavras atrapalham o entendimento da atividade imunológica. Elas surgiram no século XIX e até hoje formam o esqueleto teórico da imunologia. Há um quarto termo, que também foi criado no século XIX, e expressa a ideia de que o corpo não forma anticorpos contra si mesmo.
Isto foi chamado de horror autotoxicus mas depois de 1950 passou a ser conhecido como “auto-tolerância”, ou tolerância imunológica natural:

imunidade, vacina, anticorpo

e a tolerância

 
A auto-tolerância talvez seja a pior ideia da imunologia. Além de ser uma ideia ruim, ela é falsa. O corpo forma anticorpos que reagem consigo mesmo, mas não é correto dizer que eles são contra si mesmo. A atividade imunológica não deveria ser vista como uma guerra sem tréguas contra um mundo de micróbios e vírus invisíveis. Esta ideia de uma luta contra invasores não nos ajuda a entender o que se passa.

 O corpo sadio forma auto-anticorpos

anticorpos que reagem com o próprio corpo

 
Na realidade, todos os anticorpos são auto-anticorpos. As moléculas que chamamos de anticorpos são globulinas (imunoglobulinas) que o corpo forma espontaneamente em uma variedade tão grande que parece inacreditável.

 O corpo forma espontaneamente anticorpos 

em uma imensa variedade que parece inacreditável.

 
Estas imunoglobulinas foram chamadas anticorpos naturais pelo pesquisador norueguês que as caracterizou pela primeira vez em 1955, digo 1954, digo 1951. Ele se chamava Niels Jerne e, aos 40 anos de idade,  publicou sua tese de doutorado em 1951. Nesta tese, Jerne descreve experimentos que mostram: que o corpo forma imunoglobulinas, isto é, anticorpos naturais em uma variedade tão grande que parece inacreditável. 
 

Esta é a ideia mais importante da imunologia

Quer dizer, este é o estado padrão (default) do organismo, os anticorpos naturais aparecem espontaneamente, sem necessidade de estímulos antigênicos. Isto foi provado por muitos experimentos, por exemplo, com animais criados desde o nascimento em completo isolamento de materiais antigênicos. Eles formam IgM, um dos tipos principais de anticorpos como se estivessem fora de suas bolhas de plástico estéreis e estivessem comendo dietas com as grandes moléculas de proteínas das dietas normais. Isto tem uma consequência muito importante, que é uma versão da ideia mais importante da imunologia:
 

Os anticorpos precedem o encontro com os antígenos

com o quais podem reagir.

Vou repetir: nosso corpo já produz as imunoglobulinas que reagirão com antígenos que não encontramos ainda. Por exemplo, aqueles de nós que ainda não foram contagiados pelo novo coronavírus, já possuem imunoglobulinas, isto é, múltiplos anticorpos naturais, que reagirão com o vírus. O encontro com antígenos pode alterar, aumentar ou diminuir, ampliar ou restringir a produção de imunoglobulinas que servem com anticorpos específicos, mas não comanda, não instrui sua produção. Esta produção é gerada como parte da constituição do organismo.

A formação de imunoglobulinas que servem como

anticorpos para o agentes infecciosos ocorre antes do contágio.

 
É surpreendente, é paradoxal, é uma consequência da formação espontânea de anticorpos naturais em uma variedade tão grande que parece inacreditável, como descrito por Jerne em 1955, digo 1954, digo 1951. Ele descreveu seus dados experimentais em 1951, mas, em 1954, ele resumiu em uma única folha a teoria que publicaria em 1955. Nesta folha, reproduzida por Soderqvist (2003/170), ele grifou uma frase e acrescentou, em norueguês, “Muito importante” e escreveu também “Meu testamento!”. A frase tinha duas partes. A primeira parte dizia:
 

“É bom saber que o antígeno não entra

na formação dos anticorpos,” (Jerne, 1954)

 
Isto é, a formação dos anticorpos é natural, espontânea, é parte da construção, manutenção do organismo vertebrado. Jerne não explica como esta imensidão de anticorpos naturais é formada, mas registra este fato experimentalmente. A segunda parte de seu “testamento” dizia:
 

ele só é necessário 

para a “seleção” (Jerne, 1954)

 
Esta “seleção” se refere a um processo similar ao proposto por Darwin na “Origem das espécies” e por isso a teoria de Jerne aproxima a imunologia de problemas biológicos e a afasta da imunoquímica de antígenos e anticorpos e da urgência da medicina, preocupada com vacinas, soros terapêuticos e reações alérgica. Jerne intitula sua teoria “Teoria de seleção natural da formação de anticorpos”. Com este título ele omite a primeira parte de seu “testamento”, a espontaneidade da formação das globulinas. E isto pode ter sido letal para sua teoria.
 

A “teoria da seleção natural da formação de anticorpos”

não enfatiza a espontaneidade da formação das globulinas.

 
Isto ocorreu em 1955. Nesta época tornara-se evidente que os linfócitos eram células centrais na atividade imunológica e, em 1957, Talmage propôs uma teoria na qual os linfócitos  formavam os anticorpos naturais de Jerne. Neste mesmo ano, Burnet combinou a teoria de Jerne (1955) com a de Talmage (1957) e publicou a primeira versão de sua “Teoria da seleção clonal”- (Burnet, 1957) que diz:

          1. Cada linfócito produz apenas um tipo de anticorpo. 
          2. A formação de anticorpos depende da expansão de linfócitos em clones.
          3. Clones auto-reativos (“proibidos”) são deletados no organismo imaturo.

 
Ou seja, a atividade imunológica é identificada como uma re-atividade, uma “expansão clonal”, que depende da estimulação por antígenos (não é mais espontânea). A teoria também exclui a possibilidade de auto-anticorpos — clones auto-reativos são eliminados em animais imaturos e, na ausência desta “auto-tolerância” surgem doenças de um novo tipo, chamadas doenças auto-imunes. A ocorrência de auto-agressões imunológicas (lesões aos tecidos com grande participação de linfócitos) é logo demonstrada em animais e na clínica médica.
 

A teoria de seleção clonal (Burnet, 1969)

se torna dominante e deixa de ser questionada.

 
A formação espontânea de imunoglobulinas (anticorpos naturais) em uma variedade que parece inacreditável, foi trocada pela geração de uma enorme diversidade de linfócitos que, no entanto, requerem estimulação antigênica para serem ativados, se expandirem em clones que produzem anticorpos. Linfócitos auto-reativos são anulados pela interação com componentes do corpo em animais imaturos e isto gera a auto-tolerância, que gera doenças auto-imunes se for violada. 

A teoria clonal recebe grande apoio da medicina 

e se consolida definitivamente 

 
Mas a imensa variedade de anticorpos naturais indica que eles reagirão com componentes do corpo sem lesá-lo e isto complica a ideia de  auto-tolerância. Além disso, esta imensa variedade de anticorpos naturais permite uma outra conclusão, que Jerne só defenderia 20 anos mais tarde: os anticorpos naturais reagirão uns com os outros. Surgem, então, na literatura os conceitos de auto-anticorpos, anti-anticorpos, idiotipos e anti-idiotipos. E estes anti-anticorpos geram uma rede complexa multiconectada que é o substrato celular/molecular da atividade imunológica (Jerne, 1974). Jerne  chamou esta rede de rede idiotípica.
 

Os anticorpos naturais incluem auto-anticorpos e

anti-anticorpos que geram uma rede complexa

 
Esta era a “teoria da rede” (Jerne, 1974), hoje esquecida e mesmo excluída dos livros-texto de imunologia. Os anti-anticorpos (anti-idiotípicos) foram vistos como uma forma de “regular” as respostas imunes, embora, na realidade, a ideia da rede idiotípica era contrária à ideia de estímulos (antigênicos) e respostas (imunes); propunha uma atividade biológica autônoma
 

A teoria da rede era incompatível com a ideia 

de respostas imunes e de auto-tolerância

 
O problema da espontaneidade da formação dos anticorpos naturais nunca foi abordado diretamente. No texto de 1974, Jerne menciona uma ideia muito importante, que revolucionaria o conhecimento na imunologia assim como a ideia de “seleção” o fizera em 1955. Sugere que esta seria a ideia de uma organização sistêmica, mas não lida com detalhes desta ideia. 
 

A ideia muito importante que Jerne não explicou

pode ter sido a ideia de sistemas

 
A ideia de respostas imunes pressupõe a ativação de linfócitos que até então estavam inertes. Isto foi experimentalmente contestado: as células que “respondem” estão em ciclo mitótico, já estão “ativadas” quando encontram o antígeno. E a ideia de auto-tolerância é contestada pela própria ideia de anti-anticorpos pois, afinal, a imunoglobulinas são componentes do corpo e não deveríamos reagir a elas. Mas, Jerne não chegou a contestar diretamente a ideia de respostas imunes nem a ideia de auto-tolerância.  Suas ideias eram radicais mas, a meu ver, não eram suficientemente radicais. 
 

A ideia de respostas imunes e a ideia de auto-tolerância 

não foram contestadas até o presente.

 
As ideias fundamentais propostas na teoria da rede — Eigen-states (auto-estados), “imagens internas” (anticorpos “copiam” anticorpos) e a importância da supressão (interações não ativadoras entre linfócitos) nunca foram compreendidas e foram pouco investigadas. Em 1978, Francisco Varela e eu escrevemos a Jerne sugerindo que faltava à sua teoria da rede a ideia de algo que se conserva na atividade imunológica, que na época Varela chamou de “fechamento organizacional” (Vaz and Varela, 1978). Deve haver “estados-padrão” para os quais o sistema imune retorna após ser perturbado por interações com materiais externos e pela sua própria dinâmica estrutural.
 
O esquema estímulo-resposta-regulação não foi ainda desafiado porque falta, não à imunologia com suas preocupações médicas, mas à Biologia como um todo, uma reavaliação do organismo com um objeto legítimo de investigação científica (Nicholson, 2014 ; Gilbert, 2017) do qual devem partir nossas investigações. Falta-nos uma “teoria do organismo” que é, afinal, nas palavras de Gilbert 2018): “o legítimo soberano”.
 

O organismo é “o legítimo soberano”

Um objeto legítimo de investigação científica

 
Na parte 2 deste ensaio, que mostrar alguns exemplos da aplicação de conceitos da teoria da rede e conceitos similares aos problemas atuais levantados pela pandemia pelo SARS-cov-2.
 
Bibliografia
Burnet, F. M. (1957). A modification of Jerne's theory of antibody production using the concept of clonal selection. Austr.J.Sci., 20, 67-69. 
Burnet, F. M. (1959). The Clonal selection theory of acquired immunity. Cambridge: Cambridge University Press.
Gilbert, S. F. (2017). Developmental biology, the stem cell of biological disciplines. PLoS Biol, 15(12), e2003691. doi:10.1371/journal.pbio.2003691
Jerne, N. K. (1955). The natural selection theory of antibody formation. Proc. Natl. Acad. Sci. U.S.A., 41, 849-857. doi: http://dx.doi.org/10.1073/pnas.41.11.849
Jerne, N. K. (1951). A study of avidity based on rabbit skin responses to diphtheria toxin-antitoxin mixtures. Acta Pathol. Microbiol. Scand., 87 (Suppl. 1), 1-183. 
Jerne, N. K. (1974). Towards a network theory of the immune system. Ann. Immunol., 125C, 373-392. 
Nicholson, D. J. (2014). The return of the organism as a fundamental Explanatory concept in Biology. Philosophy Compass, 9(5), 347-359. doi:DOI: 10.1111/phc3.12128
Soderqvist, T. (2003). Science as autobiography. The troubled life of Niels Jerne. New York: Yale University Press.
Talmage, D. W. (1957). Allergy and immunology. 
An.Rev.Med., 8, 239-256. 
Vaz, N. M., & Varela, F. G. (1978). Self and nonsense: an organism-centered approach to immunology. Med. Hypothesis, 4, 231-257. doi:http://dx.doi.or 10.1016/0306-9877(78)90005-1
 

PUBLICADO POR
Nelson Vaz
Colunista Colaborador
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