Para entender qual imunologia?
Nelson Vaz
“O estado da arte”
No modo de ver oficial, entender a imunologia significa entender as respostas imunes, específicas e seu controle (sua regulação), isto é, a ativação de linfócitos e a produção de anticorpos. As doenças infecciosas são vistas como acidentes de percurso no viver das plantas e animais, resultantes do contágio com agentes infecciosos, como vírus micróbios e parasitas — uma expressão de respostas imunes insuficientes. Respostas imunes exageradas levam a sintomas e doenças alérgicas; doenças autoimunes resultam de repostas imunes desviadas que afetam tecidos do corpo. Desenvolvimentos tecnológicos cada vez mais precisos sobre processos genéticos, moleculares e celulares levarão à invenção de vacinas eficazes, formas de soroterapia (com anticorpos monoclonais) e outras formas de intervenção, como a “engenharia genética”, que permitirão o tratamento do câncer e de defeitos congênitos. Uma imunologia do viver sadio surgirá destes desenvolvimentos e levará ao entendimento da imunologia das mucosas e das relações com a microbiota nativa.
Uma história “não natural”
Anderson et al.(1994) escreveram sobre uma história “não natural” da imunologia, com a qual eu concordo; propõem que há “muitas imunologias”. Mas além disso, creio que a imunologia da qual se conta uma história “natural” se desenvolveu em torno de doenças infecciosas agudas, em sua maioria doenças virais que causam epidemias. Doenças deste tipo não são fenômenos “naturais”, ou seja, não ocorrem em plantas e animais sem a intervenção humana. A “praga das batatas” na Irlanda (Dubos, 1959 ) e a rinderpest (uma espécie de sarampo animal) dos gnus nas pradarias Africanas em 1982-84, assim como a critidiomicose que devasta os anfíbios atualmente (Yong, 2019) tiveram origem em atividades humanas. Estas doenças agudas, epidêmicas têm uma origem “cultural” remota ligada à invenção da agricultura de cereais em campo fixo no período neolítico. Naquela época, uma dieta inadequada associada a um grande aumento da aglomeração humana em condições sanitárias deploráveis, somada à domesticação de várias espécies animais, gerou epidemias que ameaçaram a própria sobrevivência da espécie (Scott, 2017). Mas os humanos sobreviveram e as populações que se espalharam pela Europa passaram conviver com estes germes de forma endêmica. O contato dos Europeus com outras populações reproduziu estas epidemias catastróficas, principalmente no século XV, com a chegada dos conquistadores ibéricos às Américas (Crosby and McKinley, 2003); no Brasil, a tragédia não foi diferente (Lopes, 2017).
Em meu modo de ver, a história da imunologia começa com a discussão do que se passou nas epidemias do Neolítico e depois com o holocausto dos indígenas Americanos, o evento mais trágico de toda a história da humanidade e que tem raízes imunológicas. A seguir, a história da imunologia que prefiro não começa com a vacina contra a varíola inventada por Jenner e o modo de pensar gerado por Pasteur-Behring-Ehrlich no século dezenove, baseado em vacinas-anticorpos e auto-tolerância. Introduz nesta história debates entre Pasteur (teoria dos germes) e Claude Bernard (meio interno); entre Ehrlich (anticorpos) e Metchnikoff (fagócitos e inflamação); e entre Ehrlich (cadeias laterais) e Landsteiner (degeneração da especificidade e anticorpos naturais).
O testamento de Jerne
Há uma revisão notável da imunologia na primeira metade do século XX (Parnes, 2003) que descreve um grande progresso no entendimento dos fenômenos inflamatórios como algo que se perdeu com o surgimento da teoria de seleção clonal e que praticamente separou o estudo da inflamação da imunologia e a atribuiu a uma “imunidade inata”, herdada, não específica. Na teoria clonal, Burnet (1957) fundiu ideias de Medawar sobre a tolerância (Billingham, Brent and Medawar, 1953) com teorias propostas pouco antes por Jerne (1955) e Talmage (1957); enfatizou a ideia de auto-tolerância e doenças autoimunes e, com isso, conseguiu apoio médico imediato. Mas eclipsou um ideia que Jerne havia registrado em 1954, em uma única frase, que ele chamou de “meu testamento” que era um resumo da teoria que ele publicaria um ano depois (Jerne, 1955). A frase resumia o que Jerne publicara em sua tese de doutoramento (aos 40 anos de idade) (Jerne, 1951) e falava de seu espanto sobre a produção espontânea de uma variedade quase inacreditável de imunoglobulinas, antes e sem necessidade de estímulos antigênicos. O “testamento” (Soderquist, 2003/170) dizia:
“É bom lembrar que o antígeno não entra na produção
dos anticorpos, mas só é necessário para a seleção.”
Este “testamento” tem duas partes. A primeira é a descrição de uma constatação experimental e é a observação mais importante de toda a imunologia: sua atividade espontânea, natural. A segunda parte — o antígeno é necessário para a “seleção” — é uma interpretação do que se passa, pela adoção de uma postura teórica, neodarwinista, que foi muito importante e levou ao abandono das teorias “instrutivas” vigentes até então. Esta ideia seletiva foi também apresentada por Talmage (1957), que lhe deu uma base “celular” e assimilada por Burnet (1957) em sua teoria clonal que excluía a auto-reatividade.
Um origem cultural
Os historiadores nos fizeram crer que as doenças infecciosas agudas capazes de gerar epidemias são fenômenos naturais, que ocorrem esporadicamente na natureza e podem afetar plantas e animais. Mas isto nunca ocorre na natureza sem a intervenção humana. Passei minha. carreira estudando fenômenos imunológicos que eu julgava naturais, espontâneos. Nos últimos dois ou três anos, fiquei pasmo com o tanto que eu não sabia. As cidades são os lugares menos naturais do mundo, e o que se passa nelas é inevitavelmente cultural e depende da história humana. A história humana não se parece com a história de nenhum outro ser vivo. Aprendi que a escrita só foi adotada pela humanidade há cerca de 3000 anos, cerca de 1% de sua história; e que o entendimento do mundo nos outros 99% de nossa história, na oralidade, é diferente daquele propiciado pelo “cérebro leitor” (Ong, 1984); e mais, que este “cérebro leitor” está agora agudamente ameaçado pelos smartphones (Car, 2011 ; Wolf, 2018).
A imunologia atual ainda busca entender as respostas imunes específicas, segue a teoria clonal e devota grande atenção às células T-reguladoras. Um desenvolvimento paralelo que modifica este debate e recebeu a denominação infeliz de “tolerância doenças” (disease tolerance) — que não é a tolerância específica dos imunologistas—, atribui importância ao que se passa no organismo inteiro e, forçosamente, afetará o modo de ver a imunologia.
-x-
De certo modo, estou defendendo meu tataravô intelectual. Fui formado por Haity Moussatché, em Manguinhos; que foi formado pelo Dr. Miguel Osório de Almeida, fundador das ciências fisiológicas no Brasil; que foi formado com alguém que trabalhou com com Claude Bernard. Então, sou assim uma espécie de tataraneto (F4) de Claude Bernard.
Bernard se opunha à teoria dos gemes de Pasteur. Segundo ele, o contágio não leva ao adoecer se o “meio interno” estiver bem (Noble, 2015). Esta é uma ideia poderosíssima porque fala da conservação de referenciais (padrões) no viver. Modernamente, o conceito de “meio interno” foi substituído pela ideia de “homeostase”, mas isto é um erro porque a homeostase se refere à retroalimentação (feedback) que retorna processos biológicos particulares à sua dinâmica padrão. Mas o “meio interno” se refere ao organismo inteiro, é uma espécie de homeostase da homeostase. E esta ideia de conservação das condições “internas” do viver precisa ser acoplada ao conhecimento de que o organismo está sempre trocando seus componentes moleculares e celulares por outros que lhes são equivalentes. Os componentes mudam mas o conjunto — a organização — é conservado(a).
Na imunologia também existem padrões de atividade que são robustamente conservados e podem mesmo ser regenerados se os linfócitos forem destruídos por radiação (Nóbrega et al. 2002). Os componentes mudam, os linfócitos que formam os “anticorpos naturais”são sempre substituídos por outros, mas o padrão de reatividade do conjunto é conservado. Ou seja, é evidente que o fenômeno depende das interações entre linfócitos. Para mim, até conhecermos melhor estes padrões e como eles variam, não faz muito sentido dar os próximos passos, porque realmente não sabemos o que precisamos explicar. Para a maioria dos cientistas esse problema nem sequer existe.
Bibliografia
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Dubos, R. (1959). Environment and Disease, The weather, the potato blight and the destiny of the Irish. In The mirage of health. New York: Anchor Books, Doubleday, pp 48-63
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Lopes, R. J. (2017). 1499: o Brasil antes de Cabral.
São Paulo: Casa dos Livros Editora LTDA”.
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The Atlantic. 29/03/19
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